terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Árvores no Coração # 5

OLEA EUROPEA

Estrelas fixas, estas árvores de prata. Progrido no extenso olival
Para que alguma coisa valha a pena, quem sabe se as aves que o sobrevoam,
Quem sabe se a luz remota que aqui cai para que os milagres se sucedam
E possam chegar os homens com as suas varas para beber a terra.

Em cada oliveira vejo um rosto, há rostos de muitos séculos que habitam
Estas árvores, estão nelas como graça e espírito, a escrever em cada folha
O nome que sempre tiveram e ninguém conseguiu ler, nomes do início
Do universo, em marcha, sempre em marcha para que o há-de ser limpo
E vem, de novo, expandir-se nos brilhos de que cada sombra.

Um ofício impaciente adensa cada um destes ramos, tudo parece feito
De lentidão, como a natureza institui, mas o enigma
Fez para outras rasuras e outras intensidades, como vi em Djerba,
Como vi em Atenas, como vi em Oran, rápidas essências
Que sobem das planícies como se mais nada houvesse
Que um laço repentino a unir todos os laços, todos os céus.

Os óleos destas árvores existem para que rejubilemos, a mesa é franca,
Em volta dela avistamos os rostos de sempre, o rosto das árvores,
Que são como de homens, estrelas fixas a escutar os nomes dos séculos,
O que alguns preservam nas ramificações de cada cor, como faz a mulher que passa
Na bicicleta vermelha que amplia na paisagem sobre esta prata, este verde,
Este cinzento, este talismã que responde aos mais ténues ecos do coração,
No fulgor da noite constelada em que cada alma se faz bênção.

Os reis do mundo são estas árvores sem fim, nenhum outro poder
Se revela senão por este sol que contêm, sol de sóis, milhares de sóis
A tecer luz para que vejamos na treva e tudo fique limpo e isento
Como estas árvores pelas quais passo e a que abraço o tronco
Para que a vitalidade sobrevenha e tudo tenha um nome.

Por que choro quando toco estas árvores? Por que se me enchem
Os olhos de lágrimas quando entrevejo este verde marginal
Que me toma o coração? Por que sinto, entre a ramagem,
Fios de frio que me fazem sangrar e ter vertigens? Por que nave
Tomo as oliveiras, estes seres frágeis que a custo respiram,
Mas o ar constrói para que respiremos melhor? Por que corre
Mais rápido o sangue nas veias por esta frescura ímpar, este viço?

Ah, as folhas adejam, adeja sobre as nossas cabeças a branca
Queimadura destas árvores, oliveiras de  Elêusis, de Tiro, de Alepo,
De um lugar a sul do meu corpo, onde todo o azeite se derrama
De ânforas antigas e há homens que comem pedaços de terra
Em grandes pratos de bronze enquanto cantam a agrura
De não terem nome, ainda que o seu nome esteja inscrito
No tronco destas árvores, nestas densas bagas verdes,
No horizonte sem fim que transfigura a vida e agita o vento.



  arte de Agostinho Santos

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

Árvores no Coração # 4

CUPRESSUS LUSITANICA


Vivi a infância rodeado de cedros. Talvez a infância
Seja esse odor que ficou nos meus dedos, que sempre pouso
O olhar em coisas longínquas, mesmo quando as vejo perto.
Talvez viver a infância rodeado de cedros me tenha preparado
Para este recrudescimento da mágoa perante as coisas, por mais
Cheias de graça que cheguem, perto ou longe de mim.
Talvez cada um de nós tenha um cedro inesquecível na infância
Como uma avalanche ou um sonho, e a infância não seja
Mais do que isso, um lugar que se torna desabitado assim que termina.

Que pode um cedro? Pergunto hoje, que desenrolei a infância
nas sombras longínquas. Um cedro pode levar-nos longe,
Doce que é, e rude, exactamente como longe me levou a infância,
Sempre aqui perto e sempre tão distante. Que se passou
Na minha infância para que eu tenha este ofício de impaciência
Ao que perdi, ao que tive e nunca foi meu? Que pode a infância?

Lembro-me que havia um cedro no centro do mundo.
Que o meu bairro era feito de ruínas assombradas,
Que as ruas em que passei eram habitadas por raparigas assombrosas
E uma montanha de sombras intransponíveis.
Onde estou eu nessas ruas, na transcendência dos quintais
Dos meus antigos vizinhos, nos terraços onde estive
A assobiar longos momentos, esse lugar de enlevo
Em que os cedros me respondiam com a transfiguração dos ventos?

Saí do paraíso para nunca mais voltar, os cedros pontuavam
A minha alegria, iam as nuvens no céu como redes de pesca
Que alguém desenrolava, os meus vizinhos sabiam
O que fosse o inferno, gemiam de noite, atiravam pedras
Aos candeeiros, faziam longas excursões a lugares que não existiam,
Esperavam o milagre da multiplicação dos cedros em pequenos
Oratórios onde era a escassa a luz, mas espessa, sublime.

Onde estou eu naqueles cedros que a minha infância perdeu?
Que privilégio de mágoas posso se os recordo, se me vejo
Nos campos que circundavam a minha casa, naquele
Rumor de ventos inacessíveis, desbragados, a tanger
A minha inocência e a minha nudez? Onde estou na lonjura
Em que tudo falhei, reminiscência e caos em que os cedros
Estão mergulhados agora, como se fosse a solidão
A única imunidade que resta?

Dá nisto ter vivido a infância rodeado de cedros, o passado
É uma coisa branca que se crava na memória, na carne.
A imagem da vida cede a esse vislumbre, continuo a morrer,
Mas tenho comigo os cedros da infância, o incessante percurso
Do deslumbramento, este chão flagrante em que a humildade se abisma.

Tudo é grave e miúdo, agora. Tudo é diminuto neste tempo
Difuso, mas há uma hora em que me lembro dos cedros
Da minha infância, árvores brilhantes que é impossível ver,
Mas se sentem, sentem-se como um luminoso obstáculo,
Um obstáculo que ajuda a progredir, a perdurar, a intuir
Que é impossível adormecer na restrita faixa de luz que ainda resta.

© (inédito) Amadeu Baptista 



                                                                                      arte de Agostinho Santos














quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

Árvores no Coração #3

ALNUS GLUTINOSA

Uma fila infinita de amieiros corre ao longo
Do rio e tudo mexe aqui. Pudesse eu e correria
Com essas árvores magníficas e por elas cantaria a cada passo,
Como se não mais existisse o silêncio avassalador
Que vai de margem a margem deste rio.

Inscrevo na terra a minha sombra, no rio
O meu reflexo. Há uma doce violência que me faz
Percorrer a selva, sob o escarcéu das aves que se refugiam nos ramos
Como se acabasse o mundo de nascer ou de morrer.

Entretanto, há o sol, o milagre a que pertencemos,
Eu, tu, as aves, os amieiros, a divindade que assestamos
No que cremos para que tudo se perca e tudo se transforme,
A multidão de verdes que arde em volta, a tarde que voa
Em obscuras transparências que tudo cobrem e tudo desafiam.

Crer no silêncio e nas aves que cantam há-de ser da ordem
Da origem do universo, o contraditório que invocamos,
Esta escrita que se espalha no coração da luz, esta luz
Que se lança de amieiro em amieiro para compor o bosque
Para que haja uma última possibilidade de salvação na clareira imprevista.

O que posso deter da beleza? O que detenho destes amieiros
Quando a noite chega e tudo não é mais que um extenso obstáculo
De treva? Que detenho das raízes deste rio, destes sons, destes arcos
Levantados em cada encruzilhada, onde, sem apelo nem agravo,
Me crucifico? Duro ofício é o de prevalecer, a morte
Chega em fluxos intermitentes, acode-nos, acorre-nos,
Corre connosco como esta fila de amieiros que se ergue
Ao longo do rio e, dentro da treva, são como um rio solar
Que queremos navegar.

São as árvores que fazem as aves voar ou as aves que incitam
Ao voo todas as coisas que existem? A fila de amieiros voa
Na densidade propulsora da noite, ou sou eu que voo
Nos interstícios da noite, sem que mais nada possa fazer
Do que escrever? Escrever é uma arte intangível, tal como o voo
De uma árvore é não mais que um percalço de treva sobre a terra?

Lado a lado com os amieiros, corro. Não importa se corro
De jusante para nascente ou de nascente para jusante, se do nascimento
Para a morte, se da morte para o nascimento. Faço tudo ao contrário
Do que seja plausível, as minhas expectativas são o que ocorre
Escrever a cada passada, uma a mais ou a menos para a morte.

Importa é que haja rio, árvores, aves, voo,
Como se acabasse o mundo de nascer ou de morrer.
Corro alegre e desesperadamente, corro ao lado das árvores
E desprendo-me da terra como estes amieiros que correm na margem do rio
Para que posse ser ave, e árvore, e criador.

Ah, uma infinita fila de interrogações vai comigo, ramagens
De extrema fragilidade que dão sombra, sol, sentido ao que apraz
Precaver no denso itinerário em que transito de um lugar a outro,

Para que me leve esta espessa luz que no coração hei-de guardar para sempre.


© (inédito) Amadeu Baptista 


                                                                                      arte de Agostinho Santos