domingo, 15 de maio de 2011

Açougue, 2008



DOIS MIL E DOIS

Atiro o corpo à cama estreita
e não mais que o cansaço
me assedia.

Sobre a memória já me disse tudo.

Mas, ainda assim, insisto
a voltar a ferir os joelhos neste cimento
ou a queimar os dedos nessa chama extinta.

Lá fora, chove.

De novo, chove
nesta rua íngreme, onde a praga
dos pombos, agora, se não escuta, nem o grupo
trânsfuga dos rapazes percorre em busca
do obscuro dealer, o obscuro
clarão que nos aqueça ou adie.

Pergunto-me por que nunca me droguei
em toda a vida, ou não fui nunca
capaz de um gesto suicida
exemplar, que arrumasse de vez
com os pequenos e grandes equívocos
que me cercam,
as profundas derrotas, a desventura
de ter nascido aqui para que a angústia
amplie as sombras e a descrença.

Pergunto-me porque nunca
assassinei ninguém, tomando como justo
qualquer pretexto, uma palavra
fora de contexto, um olhar
que não ficasse impune, uma cobiça
grave que, de súbito, despontasse
nesta falta de sossego, de paz
ou de dinheiro.

Ando, há anos,
a mastigar defeituosamente
por ser insuportável o preço do dentista,
desde cedo aprendi a evitar
a compra de algum livro indispensável,
passo o tempo a ver nos outros a alegria
que nunca me escolheu, por pouca sorte,
ou miserável traição que sobre mim alguém
tivesse perpetrado, nas minhas costas largas.

Eu creio que tudo isto é um ardil
e não há-de existir em cada coisa
senão a sugestão da felicidade,
manipulável por quem tem mais poder.

É bem possível que eu não entenda a culpa
e algumas imagens do espelho
que a esta noite trazem outras noites
e são só espancamento, nesta fase
ilícita e implícita do engano
a que chamamos vida, tomando como certas
as incongruências dos outros e as nossas,
sempre mesquinhas, obsoletas, medíocres.

O mundo, o grande mundo que nos cerca,
deixou de deslumbrar e não me apraz
abrir o canivete e o irrisório
para concatenar mistérios sobre quanto
me induz à sonolência, ao desprazer,
à mágoa.

Só os cães se escutam,
ao longe, a esta hora, só o trabalho
convulso da memória me salva um pouco,
sendo que é tarde demais para qualquer gesto
sobre este universo de destroços
e camuflagem recorrente
entre os ruídos vários, tão afadigados
e próximos que a cabeça estoura
e as forças se esvaem, sitiadas
por uma irrisão sem nexo, perturbada
pelas práticas fascistas da democracia,
as águas correntes do vizinho,
o soco no estômago com que me atinge
o real escancarado à minha frente,
o amor desperdiçado e sem remédio,
a ameaça isenta de perdão.


(in Açougue, Corunha, Espiral Maior, 2008)

Prémio Espiral Maior, 2008

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