quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Vida adulta / 28

DOIS MIL E UM

O prodígio é designado
por um nome oculto
nos teus dedos –  tanta vida
palparam,
tanta pulsação franquearam à luz,
tanto movimento perpetuaram na terra,
que somos infinitos.


( in Açougue, Corunha, Espiral Maior, 2009)
 
 


Foto: © de Amadeu Baptista

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Vida adulta / 27

DOIS MIL

Adiro claramente à tua boca luminosa
quando a noite cai e as escavações isolam
o tráfego telefónico, nesse instante
sou contigo uma árvore, um gesto fulminante
na parcimónia das coisas que ao tacto
proliferam debaixo dos lençóis e ampliam
o sussurro dos nomes, a apologia
de algo que é consistente e manso
e vem tocar as imagens dos dias que perdemos.

Adiro à tua fome e à tua fonte, a algo decisivo
que por ti chega de um lugar longínquo,
de um veloz contágio,
desses sinais que nas tuas costas ardem
para que um súbito fulgor nos submeta
à incontingência do vento nas vidraças
que à nossa voz se une e nos resgata
dos trâmites legais e do infortúnio
de haver numa pequena gaveta a inocência
a acenar-nos como um pássaro ferido.

Adiro à tua língua, adiro às tuas coxas,
às grandes nuvens que os teus lábios formam
e com desmesurada violência
secretamente exploras sobre a treva
para que a face fluorescente do amor
jamais se tranquilize e possa tudo
o que pode um incêndio numa cama,
a carícia como uma tempestade,
o sumo que reverte em benefício
de uma paixão translúcida e atónita.

Adiro à agilidade dos teus pés,
dos teus seios, das tuas mãos e sexo,
transfigurando-me em tudo o que imaginas,
breves canais, infusas e fogueiras,
barcos ao longe, ferozes animais,
a rútila nomeação do que se prende
ocultamente aos ombros, à glande,
e confere a este rumor que anda no ar
o grau exemplar em que o nosso sangue ferve.


( in Açougue, Corunha, Espiral Maior, 2009)



Foto: © de Amadeu Baptista

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Vida adulta / 26

MIL NOVECENTOS E NOVENTA E NOVE

A vida inteira à procura de um pórtico
e, contudo, nenhuma pista para lá chegar.

Vem um e diz,
“tudo deve estar na aritmética,
se contarmos os grãos de areia
das praias e dos desertos
e os ordenarmos por contrapartidas,
encontraremos a resposta”.

Vem outro e conclama,
“desta vez não há que enganar,
é o rastro dos cometas”.

Um outro grita,
“segunda porta à esquerda,
depois das escadas,
onde se presume estar todo o benefício
e o local exacto para martelar”.

Mas quanto ao pórtico,
nada.

Até que um dia,
firme e esplêndido,
nos aparece o pórtico pela frente,
e nele lemos:

paraíso para sempre, inferno
para sempre.

E ficamos a saber a natureza da nossa
insatisfação.


( in Açougue, Corunha, Espiral Maior, 2009)


Foto: © de Amadeu Baptista

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Vida adulta / 25

MIL NOVECENTOS E NOVENTA E OITO

Após a curva em cotovelo, a subida
íngreme.

Passo quase sem ver,
a estugar o passo.

A forte brisa levanta
os detritos de sempre,
embalagens perdidas,
jornais velhos,
preservativos usados,
a moral de soslaio sob as gelosias,
as mulheres no passeio,
na contraluz
da noite.

Aqui e ali, pequenos restaurantes,
um homem a urinar contra o muro,
as aves a dormir,
o surto de roedores a espiar
não exactamente a loja de conveniência,
mas quem entra,
quem sai,
quem pode enredar-se nas malhas
do engate ou ser, apenas,
vítima de um furto
menor.

De repente, o vulto.

O mesmo
de ontem, hoje,
a proteger com as mãos
a chama do zippo prateado,
o rosto suspeitíssimo.

À minha frente, caminha, devagar.

Reconheço-o como a alguém irreconhecível,
o promitente comprador da minha alma,
a assobiar baixinho,
para o lado,
para cima,
como se não fosse crime passar com esta luz
pela danação antiga
e gritar-me,

quando menos espero,

a bolsa,
a vida.


( in Açougue, Corunha, Espiral Maior, 2009)


Foto: © de Amadeu Baptista

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Vida adulta / 24

MIL NOVECENTOS E NOVENTA E SETE

Não sei de tão inúmero entendimento, tanta
película branca.

Às vezes só me basta estar aqui,
com os punhos cerrados do silêncio e a boca
fechada sobre o cúmulo dos dias
e suas certidões repentinamente descritas
sobre  a noite.

Sendo certo que essa porta se abre
para as coisas onde o mundo gravita,
sabendo que tudo desconheço,
aceito a decisão desse domínio e vejo, apenas,
todas as idades da terra, o ciclo denso
onde algo aterrador e misterioso
há-de permanecer para sempre no sentido
do que compõe os sulcos do fascínio
para que a mais vasta dimensão das coisas
seja a luminosidade simples de um castigo
ou a salvação equívoca.

O mais é pura extenuação,
sinal aterrador,
a latente figura 
de um esquecimento previsível.


( in Açougue, Corunha, Espiral Maior, 2009)


Foto: © de Amadeu Baptista

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Tatiana Faia


Tatiana Faia, poeta convidada



Dois poemas inéditos:


sibila

facilis descensus Averno;
noctes atque dies patet atri ianua Ditis;
sed revocare gradum superasque evadere ad auras,
hoc opus, hic labor est.
Vergílio, Eneida 6

o desconforto dos ombros
contra a porta 
os óculos partidos no chão
as coisas tornam-se às vezes
a noite que as contém
não emergem 
em perfeita corola 
branco sorriso
mas quebradas 
a beleza mais difícil
é a que fica imperfeita
sugerida apenas
no momento em que um gesto
a desfaz e a leva para longe
essa teimosia condenada
ao fracasso

a canção dele atravessa-te
por fim pelo cansaço
a visão do céu em plena tarde
está fora do teu desconforto
uma cor que não sirva
para falar de ti

voltas-te contra a janela
inclinas o corpo para a rua
o final de julho
desce lentamente 
sem lâminas
e está nas pedras
que compõem 
o desenho no chão
há uma precisão nas palavras
que te ensinou primordialmente a ver
talvez seja esta a tua justificação
 
sobre isso
outros te contaram histórias no escuro
quase que te sentes grato 
por esses efémeros seixos
guardados nos bolsos
em jeito de armas de defesa
mas que de nada
te têm trazido a salvo

essas palavras que te escolheram
e que pululam pela solidão 
algumas voltam mais tarde
perfuraram-te 
ou
quase distraídas
afastadas do seu centro
estabelecem uma medida
para o que fica em volta

ou foram 
a energia no momento 
em
que pára:
vergílio 
ao escrever
ibant obscuri
sola sub nocte 
per umbram

assim
um verso perfeito
para dizer que eneias
desceu ao inferno
levado pela mão
de uma rapariga
cumas
um lugar dito por uma mímica 
de pontos ardendo na noite
e o rumor do mar preso às folhas

reconstruir a partir dos estilhaços
o caminho de volta
como dizias
o amor que tens a essa teimosia
fracassada
assim dirás apenas 
que foste deixado 
para uma imagem imperfeita 
e o som com que essas palavras te dizem
distrai-te 
nas horas 
de soturnos dormitórios
na solidão de longas viagens
em salas de espera

trouxeram-te de volta
até este desconforto mínimo
de ombros contra a porta
a canção da sibila
fica fora do círculo
sons que se articulam
num eco que recua 
e se prende longe no tempo
convoca apenas
um rosto debruçado sobre o teu rosto
isso que talvez não exista
ou exista muito pouco
uma ternura que não fala de nós
uma ternura que nos salva
sem absolvição







pequenas ilhas

A lei que sou
Não me submeterá
Odysséas Elytis, Maria Neféli

poucas moedas
num bolso que se rasgou 
ruas que se explicadas
de verdade se tornam
máquinas 
imprecisos
instrumentos
que agora
deviam servir
alguma espécie de cálculo

de verdade ruas 
que são novelos desfeitos 
dédalos amarrados
a fios de sol subindo
até aos vidros das janelas
mais altas os braços
sobre os seus caixilhos
respirando sobre elas
por entre os dedos
um toque de veludo

deixaste a bicicleta 
entornada no chão
a corrente desengatada
pendendo entre os pedais
entre chuva e rumores de vento
fechas-te na cabine
os sapatos contra os aros vermelhos
da porta
o vento assobiando 
a última nota a colher:
o telefone
em suspenso
sobre a cabeça

agachas-te 
tapas de novo os ouvidos
fechas os olhos
cerrados cerzidos
completamente noite 
aquilo que de verdade és
não volta à casa de partida
esconde-se intermitente
é uma sirene rodopiando
no vento vem 
com passos de gato de telhado 
pela calada da noite
matéria insone
incandesce
sobe por entre cinza

não está para lá
desse vício
pequeno lambda
escrito
com um pauzinho ridículo
contra o bojo imenso
do mar 
nada nenhuma palavra
se pode fixar em água

nem tu pairas acima
da tentação das falésias
flor rodopiando tonta
e purpúrea
contra a porta 
mal fechada 
em que outubro pousa a cabeça
a sua mão contra a tua
através do vidro 
podes adivinhar
repetir o tempo
e não podes dizer essa hora

clássica
onde te corta
rasurando-te de areia 
e tu tornas a cair na armadilha
o tracejado amarelo 
limitando 
o asfalto contra os passeios

há sempre uma linha
por atravessar
a tentação de uma linha por atravessar
talvez por isso 
a lei que és não te submeta
não totalmente
não para já
mais tarde sim
inevitavelmente
há-de encontrar-te mais tarde

o teu rosto
um pouco erguido
tentando ver por entre a neve
prolongando o tempo
na sua medida de coisa
sobre si fechada
tu 

agachado contra o chão
na cabine as últimas moedas
espalhando-se
tudo de novo contado 
também
a tua história

e podes emergir 
tentar 
funâmbulo
cantar acima da destruição
passar de um ponto
a outro do muito alto
sem cair
sem o golpe da vertigem

cantar mesmo
porque mais nada fica
acima da destruição
excepto
isso

essas vozes 
somando-se 
a melhor metáfora
para poema é ainda esse tom de luz
ela
arrastando consigo tudo
num modo de suspender
o silêncio
o medo 
as pequenas ilhas
que o mar cortou 
de terra 
os lugares para onde não podemos passar





Tatiana Faia (1986) é editora, em conjunto com André Simões e J. P. Moreira, da revista Ítaca, Cadernos de Ideias, Textos & Imagens (n.º3, Junho de 2011). Nos últimos tempos tem colaborado dispersamente com outras revistas (Modo de Usar & Co., A Sul de Nenhum Norte). Está prestes a publicar o seu primeiro livro (Lugano, Edições Artefacto, Out. de 2011). Prepara uma dissertação de Doutoramento em Literatura Grega. 

Fotos (a ilustrar os poemas) © de Amadeu Baptista; Poemas: © de Tatiana Faia

domingo, 2 de outubro de 2011

Vida adulta / 23

MIL NOVECENTOS E NOVENTA E SEIS

Estou com o cabo-verdiano
a procurar semelhanças entre o homem
e o sicômoro,
José Luís Tavares de seu nome,
amigo
do meu amigo Cabrita.

É que em ambos encontro
a severa amizade
que ainda se não fez
e cada um dos três
tem tão certa
como estarmos alerta.

Há comparações, dizia,
há comparações determinantes,
seja entre homens e árvores,
entre árvores e homens,
entre árvores e árvores,
ou entre homens e homens.

Uns mais comovidos a oeste,
outros mais setentrionais,
o certo é que na Pedreira dos Húngaros,
entre a Almada Velha ou a Nova,
ou no burgo misterioso,
o chão difere pouco
para quem tem tronco, ramos e raiz

e é espesso, fulgente e sempre abrupto.


( in Açougue, Corunha, Espiral Maior, 2009)


Foto: © de Amadeu Baptista

sábado, 1 de outubro de 2011

Vida adulta / 22

MIL NOVECENTOS E NOVENTA E CINCO

Jogar a vida pelos “máximos”
e perder de vista
os “mínimos”,

uma carapuça que enfio.

Mas sem perder de vista
o desafio,
procuro,
entre as respostas,
saber dos que amo
se me amam,
e quanto.

Na dissonância
para que não existe troco
também apazigua
que a lealdade adira
à nossa pele.

Tratando-se da lealdade de não haver
compromisso
ou do compromisso de não haver lealdade,
noves fora nada,
que fica,
além da solidão?

O aziago?


( in Açougue, Corunha, Espiral Maior, 2009)


Foto: © de Amadeu Baptista

Teatro Experimental do Porto



Teatro Experimental do Porto em co-produção com a Fundação INATEL - Teatro da Trindade. Auditório Municipal de Gaia, Do Alto da Ponte (A View from the Bridge), de Arthur Miller, com encenação de Gonçalo Amorim. Até 16 de Outubro, de quarta a sábado, às 21H30 e domingo, às 16H00 (excepto 1/10)