Tatiana Faia, poeta convidada
Dois poemas inéditos:
sibila
facilis descensus Averno;
noctes atque dies patet atri ianua Ditis;
sed revocare gradum superasque evadere ad auras,
hoc opus, hic labor est.
Vergílio, Eneida 6
o desconforto dos ombros
contra a porta
os óculos partidos no chão
as coisas tornam-se às vezes
a noite que as contém
não emergem
em perfeita corola
branco sorriso
mas quebradas
a beleza mais difícil
é a que fica imperfeita
sugerida apenas
no momento em que um gesto
a desfaz e a leva para longe
essa teimosia condenada
ao fracasso
a canção dele atravessa-te
por fim pelo cansaço
a visão do céu em plena tarde
está fora do teu desconforto
uma cor que não sirva
para falar de ti
voltas-te contra a janela
inclinas o corpo para a rua
o final de julho
desce lentamente
sem lâminas
e está nas pedras
que compõem
o desenho no chão
há uma precisão nas palavras
que te ensinou primordialmente a ver
talvez seja esta a tua justificação
sobre isso
outros te contaram histórias no escuro
quase que te sentes grato
por esses efémeros seixos
guardados nos bolsos
em jeito de armas de defesa
mas que de nada
te têm trazido a salvo
essas palavras que te escolheram
e que pululam pela solidão
algumas voltam mais tarde
perfuraram-te
ou
quase distraídas
afastadas do seu centro
estabelecem uma medida
para o que fica em volta
ou foram
a energia no momento
em
que pára:
vergílio
ao escrever
ibant obscuri
sola sub nocte
per umbram
assim
um verso perfeito
para dizer que eneias
desceu ao inferno
levado pela mão
de uma rapariga
cumas
um lugar dito por uma mímica
de pontos ardendo na noite
e o rumor do mar preso às folhas
reconstruir a partir dos estilhaços
o caminho de volta
como dizias
o amor que tens a essa teimosia
fracassada
assim dirás apenas
que foste deixado
para uma imagem imperfeita
e o som com que essas palavras te dizem
distrai-te
nas horas
de soturnos dormitórios
na solidão de longas viagens
em salas de espera
trouxeram-te de volta
até este desconforto mínimo
de ombros contra a porta
a canção da sibila
fica fora do círculo
sons que se articulam
num eco que recua
e se prende longe no tempo
convoca apenas
um rosto debruçado sobre o teu rosto
isso que talvez não exista
ou exista muito pouco
uma ternura que não fala de nós
uma ternura que nos salva
sem absolvição
pequenas ilhas
A lei que sou
Não me submeterá
Odysséas Elytis, Maria Neféli
poucas moedas
num bolso que se rasgou
ruas que se explicadas
de verdade se tornam
máquinas
imprecisos
instrumentos
que agora
deviam servir
alguma espécie de cálculo
de verdade ruas
que são novelos desfeitos
dédalos amarrados
a fios de sol subindo
até aos vidros das janelas
mais altas os braços
sobre os seus caixilhos
respirando sobre elas
por entre os dedos
um toque de veludo
deixaste a bicicleta
entornada no chão
a corrente desengatada
pendendo entre os pedais
entre chuva e rumores de vento
fechas-te na cabine
os sapatos contra os aros vermelhos
da porta
o vento assobiando
a última nota a colher:
o telefone
em suspenso
sobre a cabeça
agachas-te
tapas de novo os ouvidos
fechas os olhos
cerrados cerzidos
completamente noite
aquilo que de verdade és
não volta à casa de partida
esconde-se intermitente
é uma sirene rodopiando
no vento vem
com passos de gato de telhado
pela calada da noite
matéria insone
incandesce
sobe por entre cinza
não está para lá
desse vício
pequeno lambda
escrito
com um pauzinho ridículo
contra o bojo imenso
do mar
nada nenhuma palavra
se pode fixar em água
nem tu pairas acima
da tentação das falésias
flor rodopiando tonta
e purpúrea
contra a porta
mal fechada
em que outubro pousa a cabeça
a sua mão contra a tua
através do vidro
podes adivinhar
repetir o tempo
e não podes dizer essa hora
clássica
onde te corta
rasurando-te de areia
e tu tornas a cair na armadilha
o tracejado amarelo
limitando
o asfalto contra os passeios
há sempre uma linha
por atravessar
a tentação de uma linha por atravessar
talvez por isso
a lei que és não te submeta
não totalmente
não para já
mais tarde sim
inevitavelmente
há-de encontrar-te mais tarde
o teu rosto
um pouco erguido
tentando ver por entre a neve
prolongando o tempo
na sua medida de coisa
sobre si fechada
tu
agachado contra o chão
na cabine as últimas moedas
espalhando-se
tudo de novo contado
também
a tua história
e podes emergir
tentar
funâmbulo
cantar acima da destruição
passar de um ponto
a outro do muito alto
sem cair
sem o golpe da vertigem
cantar mesmo
porque mais nada fica
acima da destruição
excepto
isso
essas vozes
somando-se
a melhor metáfora
para poema é ainda esse tom de luz
ela
arrastando consigo tudo
num modo de suspender
o silêncio
o medo
as pequenas ilhas
que o mar cortou
de terra
os lugares para onde não podemos passar
Tatiana Faia (1986) é editora, em conjunto com André Simões e J. P. Moreira, da revista Ítaca, Cadernos de Ideias, Textos & Imagens (n.º3, Junho de 2011). Nos últimos tempos tem colaborado dispersamente com outras revistas (Modo de Usar & Co., A Sul de Nenhum Norte). Está prestes a publicar o seu primeiro livro (Lugano, Edições Artefacto, Out. de 2011). Prepara uma dissertação de Doutoramento em Literatura Grega.
Fotos (a ilustrar os poemas) © de Amadeu Baptista; Poemas: © de Tatiana Faia