terça-feira, 1 de julho de 2014

Søren Ulrik Thomsen




Poemas de Søren Ulrik Thomsen


Irmã eu vi-te
vi-te
num espelho
como um barco
chegaste deslizando pelas minhas costas.

Estalou uma incrível tempestade,
também na tua casa rangem as portas nos seus gonzos,
como eu me escuto agora escutaste a ti mesma
e o pertinaz passo do sapo através do aguaceiro.

No teu interior levanta-se a imagem
de um jardim cheio de escuridão e giz,
plantas de sombra, musgo avermelhado,
também tu lindas com o quase nada.

Nye digte, 1987


Passou o tempo dos milagres,
o espaço povoa-se de sombras.
Outubro está aqui
diáfano como uma pedra fria e uma esperança.
Deitar-me-ei junto à irmã
até que as nossas faces ondeiem
como candeeiros numa silenciosa plantação.

Nye digte, 1987



Uma enorme música detém-se –
uma economia febril que fluía
do sonho até ao corpo e voltava uma
e outra vez
desliza.
Há canções que já não se podem cantar,
e canções que ainda não existem;
entre elas sopram notas inquietas
– nós mesmos somos sinais
negros e vibrantes
claves levantadas na pauta de setembro.

Nye digte, 1987



DENTISTA. TUMBA. ALIANÇA

Para Michael Strunge

Quando cheguei era outono, mas quando saí do dentista já era inverno. Paro diante do escaparates das lojas e sorrio abertamente à minha imagem reflectida, e os meus novos dentes de ouro relampejam da rosada escuridão das minhas mandíbulas, pareço um velho nazi de cinema. Nas necrologias assim escreveram que assim tinha que acontecer, mas eu não quero participar na cerimónia de dar algum sentido à tua morte que só pertence à vida. Compro uma rosa e procuro a tua tumba.  «Sinto-te a falta», digo e parece-me que sorris – mas é algo que apenas imagino. Aqui estou com as minhas primeiras brancas e o meu desejo de um anel de noivado. E aí está tu, num lugar entre demasiada terra e demasiado céu. Dentro da mina agitada cabeça.

Nye digte, 1987


Há um barco com as luzes apagadas
um livro aberto
na página do silêncio.
Não há atalho que leve ao mundo
na manhã cedo
enquanto cai a chuva
há um homem,
que sou eu,
na cozinha gelada.
Mas não um caminho
que saia do mundo.

Nye digte, 1987


Quanto mais viajo na zona red-light do meloso sul
(onde o que mais amo são as velas das sombrias catedrais)
mais descubro que até eu mesmo sou Cinzento,
cinzento como a Irlanda e as pesadas cracas
cinzento como essas duas semanas
em que o outono acabou e o inverno ainda não começou –
mas sobretudo cinzento
como o cinzento de Copenhague:
Como o corta-fogos do pátio traseiro
palpitando a 1000 x um desconhecido número de matizes de cinzento
indo e vindo por entre todas as cores e nenhuma
carregando cada uma com a sua incompreensível transformação
sob a luz grande e nervosa da tarde
que cai também sobre mim, sentado aqui no quarto que dá para o pátio
com o meu lápis e a minha dor de cabeça
balançando como um mar:
Copenhague é apenas um lugar/ onde chove
em gotas saltitantes
e eu sou só um homem/ como todos
um universo caótico e brilhante que existe
na sua velocidade
a caminho de outro mundo.

Nye digte, 1987



Porque levamos já sete dias de tempestade
e a luz se foi e não há aquecimento
e todos aqueles cabos
que mantêm o mundo unido numa rede fanática
(que nunca captura outra coisa que o vento que tomba tudo esta
noite)
partiram-se – por isso convidei a uma festa.
Um dos convidados de honra és tu, que me abandonaste
e me devolveste as minhas ânsias –
o outro és tu, cuja estranha casa abandonei
para deitar-me na minha cama saudosa.
Como entrada pede-se aos convidados que levem
o seu poema mais malogrado
sobre o que se construiu o melhor
o inesperado
o que tens na mão um dia qualquer
o que não quer deixar-te em paz
o que nunca poderás esquecer.

Nye digte, 1987



Cada manhã me levanto uma hora antes
para, escrevendo poesia, alcançar uma vida e outra:
será que pode haver uma sintaxe tão exacta
que possa apanhar o sol no espelho de uma folha
e rasgar o seu luminoso mar na ondulação das suas linhas,
uma palavra tão bela que possa despertar até a Bela Adormecida,
se se colocar como uma brasa sobre a sua azulada língua congelada,
uma frase tão clara, que queime um caminho
sobre a fronteira de treva em treva –
um poema que, pesado como sino fundido
na noite das Almas, anuncie que chegou a hora?
Se tu no poderoso manto da chuva
num dos primeiros autocarros
passares sob a minha janela, verás
uma vibrante imagem marcada de
aflição e concentração brutal.

Hjemfalden, 1991


A última hora é a melhor do dia.
Para tudo é demasiado tarde e demasiado cedo.
Bem poderia ser que fosse feliz,
mas também poderia ser o excesso de tabaco,
enjoa-me, e a mim nada me importa:
Porque de qualquer modo a cabeça me doerá pela manhã
já que me ocorre que inclusivamente tu poderás morrer.
O poema em que trabalhei toda a tarde
Não faz mais do que fumegar como uma velha lamparina.
Esvazio o cinzeiro e saio para mijar.
A cada dia acaba tudo.

Hjemfalden, 1991


Versão minha - © Amadeu Baptista





Søren Ulrik Thomsen, nasceu em 1956. O seu primeiro livro de poesia data de 1981. Poeta consciente dos valores do idioma é considerado como um dos mais notáveis da sua geração.




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