quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Hannes Sigfússon



                                           POEMAS DE HANNES SIGFÚSSON


NOITE URBANA

Branda e suave bicharada que escorre
com olhos brilhantes
na dissimulada noite
bosque de árvores vivas

Retumba no meu ouvido a noite
que corre para a desembocadura
noite que cai num mar
de luzes entorpecidas

Oh esse rosto de olhos azuis

Procuro um esconderijo
entre troncos caídos
no céspede emurchecido
com os teus olhos por fontes
manando azuis na noite
enquanto durmo

E o oceano inunda
a cinzenta terra
e a chama nos olhos
das feras apaga-se

O bosque é arrastado
por pálidas ruas

As conchas do oceano
guardam os teus olhos azuis.

Borgarnóttin, 1947 



A VIDA É MANEJÁVEL COMO UM ISQUEIRO

Não me sai da cabeça o dia de amanhã…

Fizeram o seu ninho no medo
e puseram os seus frágeis ovos no bordo dos precipícios
dos últimos promontórios.

Nidificam em toda a parte, também entre nós
e os seus ovos são mais do os dias de todos os homens
de todos os tempos

Em quanto múltiplos futuros puseram os seus ovos?

Por fim temos a nossas vidas numa casca de noz
manejáveis como isqueiros
e com paredes de aço…

Os jovens saem dos ninhos da infância
e a sua vida hospeda-se sob a asa madrasta
dessas aves de rapina

Passeiam-se entre os fios de aço
como se fosse o apeadeiro das promessas:
que o seu futuro quebre o invólucro

Também se despediram das suas vidas:
o tempo estanca-se
revoluteiam como sombras na corrente do vazio

Inclusive os seus corações pulsam noutro lugar
como o tictac de uma bomba de relógio

Cresce o fragor. Estão numa estação
onde se afogam as vozes das pessoas
e o eco dos altifalantes fala como um deus
nas abóbadas vazias
da morte.

Sprek á eldinn, 1961



ESTAMPAS

Fulgor de hélio nas nuvens

Fugaz pressentimento de uma morte próxima
derrocada de altos muros e fragor de medo

Silêncio abismal…

É o sol que acende os inflamáveis fios da mecha
que se propagam por todo o céu como uma rede estendida
de nervos sensíveis pela ambígua e exótica carga.

Olhai, a primavera faz estalar o tecto baixo e plúmbeo da
terra
com raios e relâmpagos sem o fragor do trovão:

oh, o silêncio é um grito de alegria

O que cai: umas quantas pedras de granizo
e uma lágrimas grossas e quentes, que rompem a negrura
como chuva de chispas:

Arde a seca escuridão invernal

Ardem como petróleo os lagos
e queimam-se as estrelas nos desfiladeiros
os esconderijos da terra convertem-se em espaços
que fogem
e a resistência da rua enche-se de vida

Por toda a parte aparece animada gente
das suas caixas fechadas
a praça converte-se num campo arejado
coberto de inúmera vegetação num maio apaixonado
cabelos negros, louros, ruivos, incendiados de sol
e a erva branca como uma oração pela paz
e uma bênção das tranquilas noites de sol de junho

Porque sob os capacetes reluzentes assomam olhos avaros
rostos brancos como a cera e fechados a cal e canto
colmeias cegas fervendo com o bulício voraz
de pensamentos negros em forma de moscas

que esperam astutas a ocasião para voar como dragões
sobre a exuberante vegetação, nuvem escura, negra
para extrair o mel dourado de cada corola.

Sprek á eldinn, 1961



HORIZONTES VOLÁTILEIS

O cidadão que transita pelas avenidas
quando o dia azuleia ao entardecer
e as luzes de néon brotam das paredes
como água reluzente
satisfaz despreocupado o sue orgulho infantil
com o resplendor desta cidade iluminada
que cresce perante os olhos:
Entre outras coisa é testemunha
de como os importante arranha-céus
envergam o crepúsculo azulado
como se fosse um manto vitorioso
com botões de ouro
que afinal são estrelas
e se perdem de vista
como profetas extasiados
na gloria sobrenatural
do Todo Poderoso.

E no entanto é provável
que qualquer viajante comum
em voo mágico pelo horizonte
sobre oceanos, países e desertos,
rodeado de nuvens sem superstições
veja
o que salta à vista:
Um bosque de tumbas de brancura marmórea
escurecidas pelo crepúsculo cansado
das horas vencidas
sobre um palmo de terra.

Jarteikn, 1966



NO ENTANTO DESPERTA-ME A ALBA

No entanto desperta-me a alba
com delicados modos:
os caminhos separam-se e dispersam
estrondos, automóveis e patadas
pela calma de outros bairros

Caio num torpor inconsciente
Tudo se me oculta:
o correr do sangue e dos pensamentos
por entre os escolhos e o salto
descomunal do eco pelas paredes d desfiladeiro
e o ávido girar das rodas do moinho

Quando a noite empalidece
tenho os resultados do computador
nas minhas mãos vazias

Jarteikn, 1966




FENÓMENO DO ABISMO

A linha no teu dedo
e a maravilha do abismo
que sondas

O flutuador ladeado
balançando-se ao alcance da tua vista
e a isca amarelenta espetada

O mar que dorme
A calma que balança
A meia lua banhada de luz

E o teu braço pesa
e sopesa
a linha da dúvida…

E então aguilho-te a alegria!

Lágt muldur thrumunnar, 1988



O OPTIMISMO DAS ÁRVORES

As árvores não sacrificam os seus ramos às estrelas.
Estendem os dedos para os moinhos de vento e para
os quartos de lua. Vi as suas pontas
amansar a tormenta com a incessante
flexibilidade de quem não se deixa dominar por ela
e começa a sua minuciosa procura entre os despojos
assim que amaina: um troço azul de céu
um pedaço de prata cinzenta de claridade gelada
na escura noite. Vi-os desenhados
na cega pupila do céu de inverno
como prova de um cérebro superinteligente sob o córtex
que calculasse o lucro de cada dia que passa
em forma de sóis que pingam gotas de chuva
sobre os húmidos cristais, de pedaços de gelo
acesos pelo seu conhecimento das leis
que fazem girar a terra a despeito das verdades
meteorológicas.  Com optimismo radical
levantam a sua antena indagadora na calma gelada
para captar o longínquo rumor das cálidas brisas
que pressagiam germinações e pássaros…

A meio do inverno
paro a contemplá-las.

Lágt muldur thrumunnar, 1988



BALEIAS E HOMENS

Dispersar icebergues
em forma de foguetes
com o único propósito inocente
de beber a limpidez do céu
antes de explorar o abismo…

Se fôssemos
de dois mundos
como as baleias
e rasgássemos o céu
e bebêssemos a escuridão
da sua abóbada
antes de afundar
na claridade

compreenderíamos então
melhor
as sombras da nossa vida?

Jardmunir, 1991



CURVAS E ARCOS NATURAIS

Lançadas sobre a charneca
sendas, trilhos e veredas
como amplos laços
que alcançam verdes vales
e águas nascentes

Nos seus rumos sinuosos
penso
que se podem
ler as existências de animais desaparecidos
entre montículos e pedras
entre a dor e o prazer
A sua liberdade
estava nas curvas

penso
assombrado
no meu mundo rectangular

Jardmunir, 1991



FENÓMENO DA ESCURIDÃO

A minha rede eléctrica
de alta frequência estendida
do pescoço até aos dedos dos pés
ramificada
impetuosa
e sempre em guarda
como a rede de radares de uma superpotência

Zelosamente escondida
sob a pele lisa

E provavelmente oculta para todos
menos para ti
quando nas tardes escuras
tiro a camisa

e tu a ouves ranger 
e vês os seus azulados
clarões

Jardmunir, 1991



BALEIAS ENCALHADAS


Isso branco
que se estende interminável pela enseada
não é espuma
nem flores
nem peixe salgado
posto a secar quando tu eras jovem
e chegaste do campo

É gente
massa de corpos
horizontais
reluzentes como Moby Dick
brilhantes de bronzeador e gordura

Jardmunir, 1991



ILUSÃO

A tela tensa
O bastidor
mostra a sua brancura
como um olho torto

Que arrepio
recorrerá a pupila
pensa
e vacila perante o cavalete
num novo desmaio…

Então tomo o pincel
e ofereço-lhe uma ideia.

Jardmunir, 1991



IDEIA INOPORTUNA

Junto ao caminho vi uma jovem bétula
com uma folha verde na botoeira

E assaltou-me uma ideia absurda:
Ajoelhei-me no musgo
e desabotoei
todos os botões do meu negro
fato justo
que só me deixa solta a minha reprimida vegetação

Bem, e depois?

Como e depois?

Era inverno!

Jardmunir, 1991


ALEGRIA ATRASADA

No entanto posso arrancar as minhas horas
livremente
dos maduros cachos dos dias
longínquos

fincar o dente na sua casca azul e morde-la

As minhas papilas gustativas
encontram neles um prazer insólito

Também eles
por fim amadureceram

Jardmunir, 1991



EQUILÍBRIO

Desde que deixei de voar em reactores
pela abóbada do céu
vou por um corda solta
sobre o abismo

uso as mãos como asas
guardo o equilíbrio
e eu mesmo sou a probidade

Os meus joelhos
fraquejam ante o perigo

Jardmunir, 1991




SORRISO NA ESCURIDÃO

Fotografia!

Como se a luz deslumbrante
que entrou pela janela
fosse a mãe
desta eternidade
que tenho entre as mãos.

Tudo o mais
são sombras chinesas.

Jardmunir, 1991



Versão minha - © Amadeu Baptista


Hannes Sigfússon (1922-1997). Poeta atómico. O seu primeiro livro – um original ciclo de poemas de interpretação fragmentária e difícil – apareceu em 1949. Os seus poemas apresentam uma visão ampla da política, da cultura e do homem em geral. Tradutor activo de poesia.

Sem comentários:

Enviar um comentário