quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Lasse Söderberg




                                                POEMAS DE LASSE SÖDERBERG


PAUL ÉLUARD IN MEMORIAM

Pode o cântaro ser mais belo que a água?
Pode a morte de um poeta iluminar o mundo?

O dia era de nácar, foi o dia mais belo
daquele inverno. Um cavalo de luz ondulou o céu.
Chegou uma carta do vazio
e o sino da neve estalou com nítida sonância.


Escuta o sussurro das palavras louras nos lábios do poema!
Escuta as suas pulsações, a força elementar da fonte.
Uma luminária de palha move-se pelo nosso jardim encantado:
é alguém que estuda minuciosamente heráldica de frutos.

Água celeste, estação de metro, subúrbio oprimido como um peito!
Alguém morreu em Paris, a cidade de múltiplos nascimentos,
sob o sol da esperança, sob um amor desintegrado.
Um cão doente ronda pelo umbral da porta.

Vejo-te: ancião de ideias luminosas, nervoso
e transparente, vejo-te a desfazeres-te em pó,
vejo-te a desvanecer-te como um ténue fumo ou neve,
uma nuvem de neve negra em noites brancas.

Akrobaterna, 1955



SOBRE A ARTE DE MANEJAR UM CADÁVER

Primeiro transportaram o cadáver
de helicóptero de um despovoado,
depositaram-no meio nu numa pia
para que todos o vissem.

Fotografaram os restos mortais.
Depois enterraram-nos algures
para que não se movessem,
para que ninguém os visse.

Mas não os vendo ninguém cresceu o medo
como o cabelo e as unhas aos mortos.
Desenterraram o cadáver e cortaram-lhe um polegar
como prova da sua morte.

Depois queimaram o corpo
e enterraram as cinzas num lugar incerto
para que não se sublevassem
e formassem um exército invisível.

Passará muito tempo e o medo
todavia enterrará e desenterrará
o cadáver que comanda uma guerra tenaz
em Santa Cruz e outras paragens.

Rós for en revolution, 1972



PERGUNTAS SOBRE A HISTÓRIA

I

Quando já não há tinta,
deve-se escrever com sangue?

Quem pode obrigar a falar o mexilhão
ou a abandonar o seu sussurro ao búzio?

É verdade que as condecorações
abandonam os generais quando morrem?

E que os pássaros negros
já não podem orientar-se sem bússola?


II

É mais humano o verdugo
por ter um nome risível?

Chegarão alguma vez os répteis
a ser amestrados para desfilar?

Por que não se podem as mortalhas converter em bandeiras
quando é tão frequente o inverso?

E, a propósito, como é possível que
até o caminho que mais recto se traça

apresente com tanta frequência veleidades circulares?

Nerudas aska, 1987



A ERVA DE MANÁGUA

I

Um rebanho de ruínas pastando
em metade da cidade, pareceu-me.

A erva crescia ali como o cabelo dos mortos.
Tinha a sua história a contar.

Sentei-me a escutar
como se pela primeira vez.

Aproximaram-se crianças com as mãos vazias,
privadas dos seus pais, escuros.
Pareciam a erva queimada
sob a qual cresce a nova.
Ali havia também homens e mulheres,
silenciosos, sérios como raízes.

E todos escutavam, pareceu-me,
como se pela primeira vez.



II

O lugar em que me encontrava
era o intervalo coberto de erva,

o ponto entre duas épocas,
ambas existentes,

uma sem começo real,
outra sem fim real

e do mesmo modo me encontrava eu
no meu próprio ponto de ruptura

em que estava dividido em duas partes,
as duas como estranhas uma da outra

e no entanto vivas no mesmo alento.
Mas aqui, entre o nascido e o por nascer

era um testemunho incerto,
eu mesmo erva entre as ruínas.


III

O que nada é, será.
O que nada foi, é.

Sussurros, rabiscados com pressa
na erva, regressaram à sua penumbra

Por toda a parte havia seixos
como excrementos deixados pelas ruínas,
que lentamente se iam distanciando,
pareceu-me, enquanto os homens,

as mulheres, as crianças permaneciam
sem mover-se, inflexíveis

como a grade do silêncio
armados de doçura.

A cinza que vi nas suas mãos
era o princípio do país.

Slottet la Coste ligger i ruiner, 1990



MOEDA DE COBRE
para Octavio Paz

(Gaivotas)

Enquanto falamos
erram as gaivotas
o vento do sudeste.

Sexton dikter, 1991




Versão minha - © Amadeu Baptista



Lasse Söderberg (1931). Nasceu em Estocolmo. As largas temporadas passadas em França e Espanha reflectem-se na sua poesia, profundamente influenciada pelo surrealismo francês e pelos poetas da «geração de 27». Tradutor e introdutor na Escandinávia das literaturas de língua castelhana. Actualmente, participa em espectáculos que fundem poesia, música e teatro. Dirige a revista Tärningskastet.

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

CINCO SALTOS COM OS SURREALISTAS #2



ÓSCAR DOMINGUEZ: HOMENAGEM A MANOLETE

de corpo desmedido e exígua cabeça mas possante
está o touro a confrontar manolete na arena,
o risco raia o sangue na investida. joão cabral de melo neto,
presente na plateia,
vê como o mais agudo, o mais desperto,
consuma com o touro o combate em que uma derrocada se disputa.
e assim é que na tela se reúnem uns quantos diplomatas e poetas
de grande envergadura.



(in A Ideia - revista de cultura libertária, nº. 71/2, Évora, Nov. de 2013)
© do poema: Amadeu Baptista



quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Henry Parland



                                          POEMAS DE HENRY PARLAND


Hoje está muito frio.
A condensação dos reclames do cinema
pica como agulhas de gelo.
As sombras dos cabos eléctricos
querem cortar-me o pescoço.
O ar encolheu tiritando
por trás da esquina mais próxima.

                Idealrealisation, 1929




Uma mãe dirigiu-se a mim:
diga-me
o que falta
ao meu amor?
os meus filhos não me amam
como eu a eles.
Disse-lhe:
indiferença,
um pouco de refrescante indiferença
é o que falta ao teu amor
– então partiu
a olhar o chão.

                Idealrealisation, 1929




Tendes ouvido
a gargalhada das estações de comboio
quando ao passar vertiginoso o trem
lhes pisca o olho:
Venham comigo!

As estações de comboio jamais vão com ele.
Reflectem
sobre o gélido sorriso dos horários
e gargalham
perante as desesperadas tentativas dos carris
para se afastarem de rastos dos travessas.

                Idealrealisation, 1929



Não é verdade
que o cinema seja uma arte
(que não é arte?)
O cinema é uma religião
que transforma a realidade
num par de formosas pernas.
Podemos vê-las
mas não tocar.

                Idealrealisation, 1929




Houve um tempo
em que me atrevia a dizer:
eu
não posso
eu
não quero
(provavelmente seria porque
ainda não sabia
que na realidade
é assim).

Återsken, 1932



Dinheiro
por que o amo
acima de tudo?
Porque é o único murro
que pode derrotar
a cara de buldog embezerrado da vida.

Återsken, 1932




Tenho costume de comer.
Contra isso talvez
alguém objecte que todos os homens.
Mas, é isso uma objecção?

Återsken, 1932



Eu sei
quem rasgou as nuvens à patada
mas agora o sol resplandece.
Eu sei
quem derrubou
todas as sombras
mas agora jazem imóveis no chão.
Eu sei
quem atirou a bomba
mas atingiu o alvo.

Återsken, 1932


Voltei-me
a constipar
e estou em casa
espirrando poesia
por todo o escritório.
Os vacilos revoluteiam pela divisão
conjuntamente com os micróbios poéticos;
não posso dizer de ciência certa
quais são
uns
e quais são outros.

Återsken, 1932



Uma vez senti pena
de um homem.
Tinha um aspecto miserável
e corriam-lhe mal os negócios.
Até que um dia nós
um junto do outro
perante o mesmo espelho…

Återsken, 1932



Quero dizer
que em qualquer caso
fico exactamente na mesma.
Em qualquer caso não posso permitir-me ao luxo
de viver
por mais barato que seja.

Återsken, 1932


Eu
levantei-me às oito da manhã
(contra todos os direitos humanos?)
Levantei-me às oito.
– Heroísmo?
digamos: horário de escritório!

Hamlet sade det vackrare, 1961 (póstumo)



Ia sentado olhando pela janela
o comboio levava-me por silenciosas paragens nevadas
todo o destroçado e roto na terra
estava coberta de neve.
E quando mais se alargava a viagem
mais sereno
ia ficando o meu coração.
Uma fresca e estranha alegria

– o meu coração tinha
gelado.

Hamlet sade det vackrare, 1961 (póstumo)



Estou a barbear-me
diante de um espelho
estrábico
e a minha imagem
mostras umas ganas irresistíveis
de zombar de mim pondo a língua de fora.

Mas eu faço-o antes,
e devolve-me uma piscadela compreensiva
mas então a navalha
faz-me dois cortes idênticos no queixo.

Hamlet sade det vackrare, 1961 (póstumo)



Talvez não importe
deslizar para trás
sempre que tenha suficiente
velocidade.
Sempre será melhor
que arrastar-se para diante
(para uma meta
que em qualquer caso não existe).

Hamlet sade det vackrare, 1961 (póstumo)


Versão minha - © Amadeu Baptista


Henry Parland (1902-1930). Nasceu em Viipuri. Estou Direito e trabalhou como funcionário consular em Kovno (Lituânia), onde morreu. Colaborou na revista Quosego e na imprensa lituana com artigos sobre cinema e literatura. Publicou apenas um livro em vida Idealrealisation, em 1929. Em 1964 publicou-se a sua poesia completa: Hamlet sade det vackrare (‘Hamlet disse-o mais belamente’).






quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Juan Gelmam 1930 - 2014



                                                      UM POEMA DE JUAN GELMAN




MINHA BUENOS AIRES QUERIDA

Sentado no bordo de uma cadeira sem assento
mareado, doente, quase vivo,
escrevo versos previamente chorados
pela cidade em que nasci.
Há que capturá-los, também aqui
nasceram filhos doces meus
que entre tanto castigo te dulcificam belamente.
Há que aprender a resistir.
Nem a ir nem a ficar,
a resistir,
ainda que seja certo
que haverá mais penas e esquecimento.


Versão minha - © Amadeu Baptista






terça-feira, 14 de janeiro de 2014

Einar Bragi



                                                    POEMAS DE EINAR BRAGI


CANÇÃO DE OUTONO NA PRIMAVERA

Voa em silêncio para o sul,
ainda que chega o verão,
a tarambola do pálido prado
do cinzento páramo,
refresca um vento de asas silenciosas
os grisalhos salgueiros.

O que causa essa pena tão funda
oh cisne na onda?

A alegre cascada perdeu
a sua voz jubilosa
deixou o seu jogo o arroio
calaram-se as fontes
abatido na sua pena está o páramo
e abandonada a harpa.

O que causa essa pena tão funda
oh cisne na onda?

Assustada e calada, à minha pátria,
como a um pinheiro jovem,
ocorre-lhe o mesmo:
não canta
o degelo traz sobre o mar
uma canção de outono na primavera.

O que causa essa pena tão funda
oh cisne na onda?

Svanur á báru, 1952



ESTRIBILHO

Enquanto a terra dorme
envolta em branco manto
fluem tíbios alegres mananciais
que sonham primaveras, pelas suas veias.

Não ouço o seu rumor
mas o meu sangue capta
a calada suspeita
de um botão verde sob a neve.

Gestabod um nótt, 1953




CHUVA DE MAIO

Envolveu o menino nos seus cabelos, recolheu-o nos braços e entrou no dia, branco de sol. Vi-a acercar-se de onde a esperava, a meio do plano sedento de primavera, que acolhia com júbilo a semente recém semeada. Sorriu-se olhando-me nos olhos tristemente e disse: tu lutas pelo teu amor e pela vida contra o medo e a morte. Então inclinámos ambos a cabeça e deixamo-nos baptizar de novo. E o canto da vegetação eterna ascendeu da terra, pelas nossas bocas, cada vez mais alto, até que os céus se abriram e uma chuva suave e fertilizante nos bendisse a todos.

Regn í maí, 1957



O CARRO ARRASTA UMA RAIZ VERMELHA

O carro arrasta uma raiz vermelha
sobre a calçada negra de chuva:
novelo reluzente
que persegue a noite
sempre em círculos
na sua desesperada busca
de luz.

Sobre um losango polido
sob a névoa de cristal
volvem-se fumo branco
sorrisos, mãos, lábios impacientes
garrafas, moscas brilhantes
que voam silenciosas.

Um varredor misterioso
segue as suas marcas, recolhe
da fria calçada
pássaros friorentos
peixes vivos recém pescados
com a sua ferida de anzol aberta.

Regn í maí, 1957




CANTIGA DE AMOR

Amo a mulher nua
com um rouxinol nos olhos
lírio perfumado recém desperto
banhada no branco sol da manha
à mulher jovem grávida
com os seus vermelhos casulos
sobre colinas pálidas
impaciente, ansiando
borboletas sequiosas,
à mulher orgulhosa, exultante,
que mostra a todo o mundo
o seu fértil campo primaveril semeado
onde o mistério cresce na escuridão
da porosa terra: cresce.

Regn í maí, 1957



BAILE

Ninguém na sala ouviu as tuas palavras… «Amo-te…», que se esfumaram na voragem
da música mais indefesas que as ternas folhas que os ventos arrancam com os olhos fechados de árvores desconhecidas no outro lado dos rios.

Regn í maí, 1957



AMANHECER

Quando a noite morreu no glaciar umas mãos jovens surgiram das nuvens, entraram no meu peito e abriram as fechaduras das portas para que a luz do dia pusesse em fuga a treva. Já não quero continuar a andar pelos campos a decifrar os mistérios pagãos das pedras, mas apenas descansar silencioso no regaço fresco e matinal do páramo olhando com olhos infantis as lágrimas alegres que verteu a noite por ter dado à luz um dia tão formoso.

Regn í maí, 1957



FAMA

Lentamente

fecha-se o laço
sobre o delgado pescoço

e o pássaro do páramo
alça a sua voz
de angústia

cala-se então o bulício
do mundo um instante

os homens escutam
surpreendidos o canto
e preparam novos

laços.

Regn í maí, 1957




NA FONTE

Junto a esta fonte clara
onde tantas vezes nos temos alegrado
com imagens gratas:
o rosto de uma jovem
uns formosos olhos infantis
as rugas de uma face desconhecida,
reunimo-nos calados
surpreendidos pelo receio inesperado
de que um dia tudo desapareça
a água se perca pelas gretas
e uma descarnada caveira nos contemple,
confiada na solidão das ruínas,
do alicerce onde se encontrava a fonte.

I ljósmálinu, 1970



JUVENTUDE

A brisa desperta
a água na clara madrugada

assim desperta o amor
ondas no teu sangue

novas a cada noite

I ljósmálinu, 1970



QUANDO ANOITECE

Vou-me,
mas os dardos brancos
de misteriosas luzes
que ardem nos olhos do dia
caem sobre o meu caminho
iluminam as minhas pegadas
sobre a areia cinzenta
quando anoitece.

I ljósmálinu, 1970




CANÇÃO NOCTURNA

Nas noites de tranquila geada, quando o cume tinha deixado a sua sombra sobre o fiorde, seguia eu as marcas na neve de uns pés jovens que agora pisam caminhos desconhecidos. Mas de súbito, e como se a neve tivesse derretido, voltei a vê-las e guiavam-me até às portas de uma casa desaparecida onde o sorriso de duas estrelas exultantes me saúdam como a luz de uma janela invisível.

Ljód, 1983


VISÃO NOCTURNA

Aqui acaba a rua
mas o olhos segue
a senda prateada
por enseadas e promontórios
e detém-se
junto à luz
sobre um túmulo amigo:
a lua sobre um vulcão
do deserto.

A sombra de dois corvos
revoluteiam inquietas sobre a neve gelada.
No alto voa a águia.

Ai de vós
homens sanguinários:
o fantasma do túmulo
tem o sono leve
e não se deixa ver
até que posto em marcha
aterroriza o páramo,
muito assustador.

 Tímarit Máls og Menningar, 2, 1988


Versão minha - © Amadeu Baptista









Einar Bragi (1921-2005). Pertenceu ao grupo dos poetas atómicos, jovens poetas que surgiram na década de 40 do século passado na Islândia. Iniciou-se como pintor em 1946 e como poeta em 1949. Os seus poemas caracterizam-se pela concentração e a depuração constante da forma. Foi muito activo em outros campos literários, entre os quais se conta a tradução de poesia e a edição. Foi fundador da revista Birtingur, que se publicou entre 1953 e 1968.

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

CINCO SALTOS COM OS SURREALISTAS # 1



PAUL DELVAUX: O HOMEM NA RUA

cresce a febre no rosto da jovem e o rio
continua o seu curso de não ser rio.
algo barroco e surreal se manifesta
na tarde primaveril desta invernia,
precocemente arbustos florescem.
ao longe a ave voa, um violino
chega de mais longe ao nosso ouvido
e faz de nós gente transgressora,
embora o plantio careça de coração e lavoura.
visto daqui, o rubor da flor parece sobrenatural.
é?


(in A Ideia - revista de cultura libertária, nº. 71/2, Évora, Nov. de 2103)


© do poema: Amadeu Baptista

quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

José Manuel Teixeira da Silva

                                                                                                Foto - © Amadeu Baptista




                             JOSÉ MANUEL TEIXEIRA DA SILVA,
                                      POETA CONVIDADO





ROMA, CEMITÉRIO PROTESTANTE

Ali fica o lugar dos estrangeiros
o inverso jardim anunciado
pelo sopro dos ciprestes, o baque repetido
das folhas dispostas sobre o musgo
Recolhe-se um murmúrio, o nome
do poeta escrito para sempre pela água
Eis a selva delicada, violetas
lírios violentos, um império dos gatos
Retomam o salto primitivo, soltam uma vida
por entre a tepidez terrífica das asas
Como se afundam as donzelas em relvados
todo o tempo para as tranças de pedra
as mãos em abandono sobre os seios
pomos longamente congelados

Chegaram pelo claro vapor da manhã
vaguearam as tardes estiradas pelas praças
pressentem nocturno o suspiro das fontes
o cerco de colunas derrubadas
sabiamente dispersas pelas colinas

e ali alcançam uma vida atrás da outra
as cúpulas mais distantes da cidade

in As Súbitas Permanências, Quasi edições, 2001



NA ESTALAGEM DE J. VERMEER

Alguma coisa deve unir os bebedores de todo o mundo
e, nas veredas do tempo, a tua respiração à nossa embriaguez
Habitará algures a eterna rapariga do brinco de pérola
toda essa conversa, mas não a conhecemos de lado nenhum
Sofremos apenas de visões voluptuosas
daquelas que não apuram, dilatam o olhar
Brinco de pérola, sol iluminado pela alma
joalharia fina, fulgor incrustado nas alcovas
subtilezas que nem conseguimos dizer
Bebemos, apenas bebemos

Haverá outros modos de escapar à vida
em Delft ou nesse lugar em que nos lês
já pouco sóbrio das palavras, do seu aroma 
que vem do álcool das manhãs, da crosta dos dias 
ainda metáforas que nunca conheceremos
São tudo já palavras, sonhos teus?
A estimável estalagem do mestre pintor
o sarro que retarda os passos entre as mesas
nossas canecas, os laços de cerveja espessa  
camadas delicadas de gordura nas paredes
telas com todo o tempo para o tempo?
Dirás que entretanto desaba a tempestade
a sua minúcia sobre os vivos
acrescentamos coisa pouca
confirmamos que o mestre confere os trocos
impaciente, a cada fim do mês

Dedicamos-te o desleixo ébrio com que tudo perdemos
o amarelo limão, cinzento claro, azul inimitável 
momentos de nuvens tão perfeitas 
sobre a prosaica solidez de cidade comercial
Os cúmulos trabalham, é certo, para os nossos dias de chuva
enlameiam as botas, alagam carreiros dos países baixos 
mas produzem acenos vibrantes entre vidraças
e os ligeiríssimos, soberbos contrastes
indispensáveis à contemplação dessas mulheres
Por que fazem renda, de quem é o seu sorriso
entre bilhetinhos, cartas penetradas pela luz
senhoras sentadas ao virginal
o que espreitam, o que tanto suspendem?
Não dirias melhor
Conhecemos, isso sim, algumas jovens leiteiras 
fica demasiado próximo o seu corpo oferecido
e, desculpa recordá-lo, foi sublime
o quadro de fogo e artifício
quando explodiu o paiol destes lugares
Morreu, sabias?, em labareda e sangue 
o grande mestre do mestre taberneiro

Cúmplices e alheios, algum dia, em certo lugar
a mesma realidade se desfaz de todos nós 
Sossega, bebemos, apenas bebemos
à tua tão precária saúde

in Música de Anónimo - poesia 2001-2009 (livro inédito) 



MIRADOUROS

As mães levam os filhos pela mão
mostram as ruas, os pequenos comércios
apontam o mar, planícies
outros campos muito rasos

Alcançam depois as paragens mais altas
conduzem-nos para o extremo dos caminhos
abordam os abismos, a placidez
Guardam os seus olhos em segredo
usam de serena violência
que volte tudo um dia apenas como sonhos

Acende-se o rastilho de miradouros na cidade
 chapas de sol longamente trocadas  
um código de clarões que aproxima
as coisas que não vemos
Quando a luz em si decai
aparece a grande nitidez
vem chamar vultos para a noite

As mães trespassam o labirinto
dessa teia, por nós cegos
pontas soltas que enleiam viandantes
afastam-nos para sempre
Há dias em que perguntam

de que mais vasto miradouro nos saberá alguém

onde o lugar que seja o mesmo olhar?

in O Lugar que Muda o Lugar, Língua Morta, 2013


Poemas - © José Manuel Teixeira da Silva




José Manuel Teixeira da Silva, nasceu no Porto, em 1959. Vive em Vila Nova de Gaia, onde é professor. Escreve poesia, alguma prosa, faz fotografia. Participou nas antologias poéticas  EnCantada Coimbra (Publ. D. Quixote, 2003) e Anthologie de la jeune poésie portugaise (Maison de la Poésie Rhône-Alpes, 2004), bem como  no volume colectivo Quarto de Hóspedes (Língua Morta, 2013). Colaborou nas revistas Cadernos de Literatura, Hífen, DiVersos e Falar/Hablar de Poesia. Realizou sequências fotográficas para antologias de poesia (Ao Porto, Pub. D. Quixote, 2001 e EnCantada Coimbra, Pub. D. Quixote, 2003) e para a obra Porto- A Arte do Ferro, Ed. Asa, 1997. É autor, desde 2009, do blogue súbito [http://subito-jmts.blogspot.pt/] Principais publicações: O Lugar Que Muda O Lugar (poesia, Língua Morta, 2013), Anima (poesia, com ilustrações de Ana Abreu, Língua Morta, 2011), As Súbitas Permanências (poesia, Quasi Edições, 2001), Súbito a mão (poesia, Fac. Letras da Univ. Porto, 1983), A Minha Palavra Favorita (prosa, obra colectiva, Centro Atlântico, 2007),Ver.  - 59 anotações fotográficas (fotografia, ed. autor/Blurb, 2012) .

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

Halfdan Rasmussen



                                             POEMAS DE HALFDAN RASMUSSEN


FOME

O caiaque ressoa como um mar aberto, sem gelo.
A faca soa a vermelho. Nas frias estrias do rifle
da fome não se abre qualquer asa.
O arpão aponta à minha esquálida mulher
e vê uma foca atrás da sua enrugada pele.

                Stilheden. Skitser fra Grønland, 1962



OLHO DE FOCA

Olha-te. Tenta-te perigosamente
para que te acerques.
Como o abismo profundo.
Como a água escura.
Rodeia-te
e observa-te
da fronteira do silêncio.
Olha-te. Absorve-te lentamente bebendo-te
até que o teu olho vê
o que eu tranquilamente vejo.
Fecho-me em torno de ti.
Transformo-te.
E não te deixarei nunca mais.

                Stilheden. Skitser fra Grønland, 1962


FIGHT

Lançar. Um tom no ar.
A linha que goteja fica tensa.
O tranquilo perfil vespertino da montanha.
A calma, profunda como um suspiro.
Ritmicamente tentador corre o carreto.
E como um músculo na escuridão
sentes o salmão. O teu coração pulsa.
Picou!

Apenas o sussurro do rio e do sangue.
O ritmo glorioso no corpo,
como se o teu coração fosse um brilhante peixe de prata
lutando por se libertar.
Procuras até no mais profundo.
Sobes de novo como uma sombra.
Ouves por trás da cor a melodia de outra dor.

És um peixe na corrente. Estás preso
invisivelmente à correnteza cantante nervo delgado
do destino. Uma força domada
em batimentos de tambor de água.
Saltas com o anzol nos lábios
através de uma chuva de estrelas.
Levam-te as ondas de dor crepuscular
até à margem.

                Stilheden. Skitser fra Grønland, 1962



ROSTO

Os largos invernos. Neve. Frio. Escuridão.
Uma rede de vestígios de trenós. Branca solidão.
Torres de gelo que perfuram o céu.
Abismos onde o dia luta com a sombra.
Pesos que levitam. Calma que colapsa.
Aguaceiros de luz na escuridão onde dorme a erva.
O espaço celeste, uma gota de som que se parte.
Nuvens de pássaros. Cores, Paisagens à deriva.
Sinal sobre sinal no teu rosto.
Escritura da vida.

                Stilheden. Skitser fra Grønland, 1962



BANCO DE PEIXES

Calma envolta em claridade minguante.
Ritmo.
Signos que sempre são chave.
Imagens fugazes.
Titubeante como uma música
de sombras redimidas.
Formas esquivas
que nada representam.
Desenhos a caminho de novos desenhos.
Sonhos.
Pressentimentos efémeros
apagados por ventos e correntes.

                Stilheden. Skitser fra Grønland, 1962



SARDINHA

Sonhei partir uma vez. Até ao fundo
esmagada por cinco irmãs decapitadas
que a cada dia me asseguravam que para um peixinho
uma lata era mais segura do que o Atlântico.

Pensei em muitas coisas estranhas. Contava
contos e fábulas às outras.
Cantava o mar e o grande banco
de peixes da via láctea sob o céu.

Tratei de as despertar. Mas todas
dormiam profundamente em espesso azeite
e estavam muito contentes com a sua situação
e com a ordem total e mundial da folha-de-flandres.

Sonhei que S. Sebastião ia voltar
saindo da bruma matinal do Atlântico
para libertar todas as sardinhas do mundo
com o seu grande abre-latas dourado.

Ansiava pelas águas profundas. Pressionaram-me
até me converterem numa acanhada sardinha conformada
cuja espinha dorsal se foi assemelhando à das outras,
débil e lassa como um aborto de minhoca.

Já não sonharei mais com o mar. Serenamente
aceitei esta igreja de lata
onde posso descansar tranquila entre irmãs
enquanto esperamos os últimos óleos.

Med solen i ryggen, 1963




NÃO ATRAIÇOEIS O HOMEM

Não atraiçoeis o homem! gritaram
Mas o homem, quem é?
É talvez aquele que geme na noite
na terra de ninguém?

É aquele rapaz que sangra
pelas nossas derrotas?

Ou o menino que morre abrasado
pela vida?

Acorremos com armas ensanguentadas
ao nebuloso lago do crepúsculo. – –
Não atraiçoareis o homem! gritaram.
Matar ou morrer!

                Aftenland, 1969



SOBRE A PERFEIÇÃO

Cada vez que vou escrever o poema perfeito,
e é algo que tento uma e outra vez,
a mão põe-se a tremer e ataca-me o reumatismo
e a esferográfica faz borrões.

E quando estou tranquilo e se aplaca o reumatismo
e a minha esferográfica escreve persistentemente,
a minha mulher entra a cada dois minutos
a perguntar se terminei esse poema.

E quando por fim logro redimi-lo
através de dores e ansiedades,
falta esse tremor, esse reumatismo e esses borrões
que tem o perfeito, se é que existe.

                Tosserier i udvalg, 1981



SOBRE O TORMENTO DO POETA

O papel branco é tão branco como a neve
e eu estou de um humor do mais negro
porque tive uma excelente ideia destinada
a um poema sobre uma donzela da Avenida da Esperança
e um domador de leões ruivo.

Mas agora a ideia desapareceu, perdi-a,
e o domador está sentado nervoso e abatido
porque que raio pode ele fazer se Eu não sei
o que se faz com uma donzela na Avenida da Esperança.

                Tosserier i udvalg, 1981



SEMELHANÇA

Só. Num quarto.
Num campo de batalha. Morto
por projécteis ou palavras.
Torturado. Queimado.
Quem sabe a quem alcança o destino?
Procuram-te
perseguem-te muitas sombras
visto e conhecido.

Imposto ou escolhido por ti mesmo.
Não há fronteira
entre afogado e enforcado.
O sangue ardente
conhecerá o mesmo frio
sejas servo
vencedor ou perdedor
malvado ou bondoso.

                Fremtiden er forbi, 1985


Versão minha - © Amadeu Baptista

Halfdan Rasmussen (1915-2002). Nasceu em Copenhaga. Estudou em diversas Universidades Populares e trabalhou em diferentes ofícios, tendo sofrido da chaga do desemprego. Colaborou em revistas sindicais e socialistas. Estreou-se com um livro de poemas, Soldat eller menneske (Soldado ou ser humano), durante os anos da ocupação alemã, poemas da resistência. Escreveu também livros para crianças e poemas humorísticos, rimados, muito pessoais, intitulados Tosserier (Tontices).