quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Caravaggio / 2

CARAVAGGIO: O MARTÍRIO DE S. MATEUS

Embora a dor seja uma ciência
comum
e todos a reconheçam,
mesmo em momentos felizes,
importa dizer que há dor infligida
pela sombra
torcionária,
que o recôndito das coisas manifesta
surdamente,
como se nada se passasse no momento
em que acontece.

A faca é uma emboscada
no escrutínio assassino,
que avança lentamente
pelas zonas de penumbra
até que a lâmina encontra
um ponto em que não há
resistência e penetra
a carne da vítima
e provoca o esgar
pelo reconhecimento do golpe.

Há também os casos em que o homicida
usa as mãos como arma,
que são como dupla sombra a aproximar-se
do pescoço e a  apertar a garganta
até que na luz das órbitas do condenado
nada haja mais que a transfiguração
dessa mesma sombra,
no início
não mais que um rastro azul
a brilhar no branco dos olhos,
e, depois, só uma agonia informe
a expandir-se no rosto,
que em súbitos estremecimentos
amplia a dor até ao último,
desarvorado,
suspiro.

E há os que preferem recorrer ao martírio
pela simples insídia,
sem derramamento de sangue,
mas a perseguição
mais ou menos subtil ao que há-de morrer,
tecendo sobre o outro
uma terrível teia de afrontas mortíferas,
em que a marcha da perseguição
abarca o disfarce da ofensa,
tal como fazem
os dominadores,
os exércitos de destruição maciça,
os cobradores de impostos,
a rede global de intoxicação,
o flagelo da fome e da doença
sobre os povos, a dose eficaz de malignidade,
enquanto cada
um de nós se vai sombriamente convertendo
em cúmplice dissoluto da ignomínia.

Outros há que elegem o emparedamento
da ansiedade, e voam sobre
as caves a arrastar as vítimas
do holocausto por escadas íngremes,
onde não chega o eco das detonações,
mas há sempre ensejo
para a sedimentação do terror,
uma fogueira acesa
ou apagada a aguardar
que o veneno exerça os seus obscuros talentos
e, por fim, extermine,
para prevalecer –

eis o que digo, Michelangelo Merisi Caravaggio.



(in Poemas de Caravaggio, Maia, Cosmorama, 2008)


Caravaggio, 'O Martírio de São Mateus', Óleo s/ tela, 323 x 343 cm, Igreja de São Luís dos Franceses, Roma, 1599-1600

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Caravaggio

CARAVAGGIO: SETE OBRAS DE MISERICÓRDIA

Uma atitude plástica indomável
e arrebatamento rítmico nas figuras,
eis o que me interessa transmitir:

sou panteísta,
e sei como nas cores há um luxo físico
que torna o que é palpável
imaterial

– de modo que o que faço
é da rua que vem,
para que se transfigure em dom de imanência
e a alma e o espírito se cumpram nos pigmentos
para que tudo seja obra compassiva,
como um enigma de arrebatamento.

A minha vida é a cor
– e o recorte que o relevo da luz
lhe introduz
serve para que o universo vibre
e uma tensão grandíloqua se estabeleça,
entre a detonação da tela
e o espectador,
num repto total,
esmagador.

Ouso o fascínio,
mas, mais do que o fascínio,
aspiro ao coração
dos que vêem a tela interiormente,
sendo que os olhos
acumulam sortilégio
para que o entendimento desmorone
a falsidade que nos cerca e mata.

Eis a encomenda:
um quadro de grandes dimensões
que patenteie
as sete obras de misericórdia corporais,
dando relevo aos justos, obviamente,
mas também aos pecadores,
já que cada um deles é cada um de nós,
se a nossa prudência souber dizê-lo
de modo a não ardermos na fogueira.

Deu-me trabalho, o esboço:
a caridade existe,
mas é tão raro vê-la
que um pintor não sabe onde encontrar
modelo adequado,
mesmo que vá de igreja em igreja
a cuidar que, de repente,
encontra exemplo para a missão.

Tentei de tudo. Tentei, até, de mais.
Mas os dias passavam, e as noites,
e não me satisfazia com o que via,
os palácios a abarrotar de nobres
sem magnanimidade, e os pobres
sempre mais pobres, a morrer à míngua.

O mundo, agora, é só hipocrisia.
E, por isso mesmo, a minha regra
é não ter regra nenhuma
– em busca da brandura
vou de sítio em sítio,
a procurar um sentido nos sentidos,
ou alguém que não difame,
ou que não roube.

Só posso pelo sonho exorcizar-me;
mas o facto é que na rua é que anda tudo
– abrindo bem os olhos, em lida
extenuante, mas de grande prazer,
basta só olhar em volta e ver:
e ver é uma arte que faz toda a diferença.
E assim foi que vi os anjos nesta esquina,
e uma profusão de personagens
a perfazer o périplo das obras
misericordiosas:

a visitar os presos,
a dar de comer a quem tem fome,
a enterrar os mortos,
a cuidar dos enfermos,
a vestir os nus,
a dar de beber a quem tem sede,
a dar pousada aos peregrinos.

Olhando o quadro, agora pronto,
exposto na igreja do Pio Monte della Misericordia,
em Nápoles,
entendo que é pelo arrojo
que vou bem
– e fico impressionado
pelo que faço dos temas,
e como os meus impulsos artísticos resultam
em explosões categóricas de beatitude
de que até eu me assombro.

Toda a beleza é transcendência,
afirmo, de mim para comigo.
No meu tempo poucos haverá
que isto entendam, embotados
que estão de dogmas e preceitos
em que se relega o mundo
e nada vive como a vida é.

Martinho tira a capa e dá-a a um pobre.
Uma jovem mulher oferece o seio
a um velho preso da sua miserável condição
matando-lhe a fome e aliviando-o
do desgaste do castigo.
Um diácono clemente
manda que os coveiros
abram a terra e sepultem os cadáveres.
Um jovem, em tronco nu, ampara os doentes.
Um Sansão, sequioso, dessedenta-se com água
que alguém pôs no maxilar de um asno.
E Santiago aloja os peregrinos
com a ajuda de um almocreve adolescente.

Eis o meu quadro, a que juntei,
sobre a multidão,
uns anjos
para que se saiba
que não são dos anjos as tarefas dos homens,
e que o que é possível pode até tocar-se
se estendermos a mão ao nosso semelhante
– mesmo que ninguém veja,
mesmo que fique no segredo dos anjos a nossa acção,
mesmo que a partilha seja, apenas, nossa
e que nada, nem ninguém, nos agradeça
o gesto,
o acto.

Chamo-me Michelangelo Merisi Caravaggio
e ignoro
se sou cristão, ou não.

No caso, interessa pouco quem eu sou.
Sei é que deixo nesta terra
uma pequena herança
de luz
e movimento
e cor
que me fará feliz
se os homens se lembrarem
que pior que o esquecimento é a ingratidão,
e que ser ingrato nesta terra é não estar ao lado
de quem na vida vai ao nosso lado

e é nosso irmão.


(in Poemas de Caravaggio, Maia, Cosmorama, 2008)



Caravaggio, 'Sete obras de misericórdia', Óleo s/ tela, 390 x 260 cm, Igreja do Pio Monte da Misericórdia, Nápoles

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Vida adulta / 34

DOIS MIL E OITO

 
Sou um homem do norte e um homem do norte
continuarei a ser até que a morte me separe.
As minhas circunstâncias são exactamente
as mesmas circunstâncias daqueles de que sou
vizinho, a gente das vielas e das ruas empedradas
a granito, os vociferadores sem mais ânimo
que o da sorte, os rapazes que peroram o descaso
de não haver árvores a que possam
subir para começar uma aventura
que não tenha fim. Na minha memória
o que está mais marcadamente aceso
tem a ver com o mistério irredutível da infância,
e desse tempo guardo choques inimagináveis,
com homens no trabalho a poder de fome e de cansaço
e mulheres em angústia permanente por não haver
o que dar de comer a velhos e crianças.
Cedo me foi dado partir para os braços de alguém
que me atenuou as faltas, com pão branco e um resto de toucinho,
pelo qual chorei, vim a saber mais tarde,
como um garoto sem saber de maior evidência do que ter, enfim,
um pequeno manjar para celebrar.
A vida era dura nesse tempo,
que eu fui vigiando quase por instinto,
fazendo o que fazem os que ampliam a vida pela experiência
e, de erro em erro, consolidam, sem mais,
o que passaram a saber, porque o sofreram.
A vida era dura nesse tempo, sobretudo
para quem me estava próximo
e eu via viver sem mais remédio do que ir transfigurando
a fome irrespondível em estoicismo feroz,
capaz, se necessário, de abalar montanhas.
Em volta, quem estava, pouco ou nenhum exemplo
seria do fascínio, mas era gente que, ainda assim,
andava de cara levantada pelas ruas, a mourejar o sustento,
fosse a lavar escadas ou contratado nas docas,
como vi acontecer aos meus progenitores.
Quem me criou foi disto que adoptou ao receber-me,
sendo que minha mãe me entregou para me livrar da miséria comum
  por assim ter sido, eu sei que ela
levou para a sepultura uma dor excruciante sob o peito,
e lágrimas perpétuas nos olhos. Fosse o que fosse o mundo,
ali estava a minha predisposição para o saber, menino e moço
levado de casa de meus pais para uma outra enxertia no meu tronco.
A casa para onde fui era um mistério, e foi nesse mistério
que dei por mim a interrogar fosse o que fosse, a luz, a treva, a sombra,
sempre a olhar em volta e a assinalar nas coisas
o rudimento de uma linguagem que me pudesse dizer tal como sou.
É certo que o que somos nunca é o que pensamos ser,
porque nós somos o que somos e o que os outros de nós fazem,
além de que também somos o que vimos, as coisas que ouvimos,
as coisas que esquecemos, os sonhos que em nós se enraízam,
sem outro modo de prevalecermos senão por outros sonhos,
no que dizemos, ao que nos aproximamos, do que nos afastamos,
inexoravelmente, pela intensidade do nosso regozijo
ou o alento que alcançamos reunir.
Eis que, portanto, a infância, a minha infância,
me entregou ao duro acaso que há nas coisas,
a confrontar-me, ainda inocente, com a morte.
E tive que cuidar de uma mulher que, não sendo minha avó,
me chamava neto, e eu amava sem saber porquê.
Ela estava entrevada, e disputávamos pelas tardes coisas sem valia,
a luz de uma planta, uma bolacha que era só farinha,
uma moeda que a sua bolsa negra resguardava das minhas investidas,
porque eu queria rebuçados, figurinhas-de-passar, amêndoas, uma bola,
e ela pouco tinha para me dar,
além da sua eterna progressão em direcção à morte.
Tínhamos uma infinita paciência um para o outro, e ela animava-se
a contar-me histórias, sendo que por essas histórias é que compus
o meu imaginário, o meu encantamento.
Não havia professor de que eu gostasse mais do que gostava dela,
pela sua pele mirrada e a sua perna inchada, gorda, de elefantíase,
que um enfermeiro mortiço tratava com afinco, com nitrato
de prata vertido sobre a chaga que, por tanta escuridão, abria em carne viva.
Falava-me da raposa e do milhafre, falava-me do lobo e do coelho,
da águia e do veado, falava-me das flores –  as brancas, as vermelhas –,
falava-me da praia e da floresta, falava-me das pedras, dos cristais,
dos reis e das princesas, do gelo e da resina, das bruxas e das fadas,
e tudo o que dizia estava vivo, mexia e respirava, porque eu,
ouvindo o que dizia, o via à minha frente, a entender
como há uma tenacidade absoluta que habita na palavra,
e que só pela palavra existe o que nós vemos,
salve-se disso, ou não, a nossa esperança.
Hoje, quando escrevo, pressinto que vem dessa mulher
o uso obstinado de comparações violentas nos poemas,
sendo que entendo que as metáforas se vivem para que haja
um termo irretorquível de eficácia na dimensão da escrita.
Certa noite, esta mulher morreu
e, nessa agonia, eu vi que há,
entre os vários planos em que existimos,
outros planos cruéis que nos ficam cravados na memória
para sempre e que nunca mais nos abandonam.
Morria ela enquanto ia comendo a camisa branca que vestia,
levando-a à boca em catadupas, numa luta incessante com a morte
pela qual eu, pela surpresa de a ver lutar com ela assim, fiquei estuporado.
Anos mais tarde, morreu a minha mãe, e tive novo confronto com a vida,
acareando a morte,
porque a fui velar a uma pequena capela de uma rua íngreme,
onde todos os tráficos existiam, da música argentina ao comércio do sexo,
da emulação pelo vinho ao desacato
das meninas que perto voejavam, a angariar clientes,
enquanto minha mãe ali jazia, morta, finalmente,
mas ainda viva, viva pela vida circundante.
Não traumatizemos as crianças, diz-se, hoje em dia,
mas a verdade é que a consciência do que me vai acontecendo
sempre me pareceu soberba e exaltante,
tanto mais que sempre quis ser poeta,
e para se ser poeta é sempre necessário estar no fio da navalha,
é necessário sentir o fio da navalha sobre a carne,
é necessário saber como se abre a ferida e o sangue corre,
e como a dor alastra sobre tudo, sem que haja esquecimento ou redenção,
mesmo se a redenção vier e a deslembrança
tiver que ser a última recompensa.
Assim cresci, assim empreendi a aprendizagem,
a constatar como na alma os passos se abismam
se a pura incandescência nos confronta com a violência que há em tudo,
sendo que quanto maior for a violência maior é o tirocínio do poeta:
a empreender o abalroamento do real para que resulte frontal a colisão
– derrapa, um dia, num troço da auto-estrada, a fazer
do ligeiro um monte de sucata e, do passageiro, lama,
não mais restando do que somos na energia cósmica, que ao pó regressa.
E assim cresci, e vi que a enxertia resultava
em algo mais sensível do que alguma vez supus,
sem que soubesse por que herói optar, Aquiles ou Heitor,
se pela força indómita e bravia,
se pela razão que toca o coração para que seja cada morte uma vitória,
ainda que os mortos, em multidões inúmeras,
com as suas botas grossas e os seus bibes verdes,
com as suas túnicas púrpura e os seus coadores de prata,
com o seu orvalho negro e o seu odor a incenso,
terrivelmente aguardem que a justiça venha, e dure, e seja feita.
Foi primavera, veio o verão, depois; é já outono, agora.
Tive dois filhos, os quais eu vi nascer com estes olhos que a terra
há-de conter, e vê-los a chegar, a suscitar ternura, fez-me querer
ser um guerreiro a combater o efémero, desarmado, embora,
mas pronto para a luta e a conquista dessa muralha inerme
com que a realidade arma ciladas sem nunca nos dar tréguas.
Fiz, então, da escrita o meu sonho maior,
e das palavras tomei o que podia para encontrar
o ardor e a harmonia, sendo que o desenlace da harmonia,
aqui, onde vivemos,
seja só inconsonância e incerteza,
perversas dúvidas,
amálgama de ferros,
trechos de música densa e obscura,
que sabemos e não sabemos como existe,
mas sentimos na alma e no espírito,
e nos enche o olhar como um bosque cintilante.
Se sou poeta, ou não, interessa pouco.
O que escrevo é só um tempo breve,
em que os mortos e os vivos se procuram
para que haja testemunho e não seja longa a espera
do fim que há em tudo. Ah, que quem venha
a seguir se não esqueça o que é o norte,
e onde fica.


(in Açougue, Corunha, Espiral Maior, 2009)



Foto: © de Amadeu Baptista

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Vida adulta / 33

DOIS MIL E SETE

Alexandria, Alexandria, procuro o teu refúgio.
Há por aí um velho que me lê os teus versos.
Amar é morrer neste porto de sal,
a pedra amarga que rasga a língua.

Mais além do silêncio hão-de estar os teus braços,
é a pedra que cinges o alvoroço secreto.
Talha-me com as tuas mãos ao sabor do teu tempo,
amar é saber-te – e, sabendo, perder.


( in Açougue, Corunha, Espiral Maior, 2009)


Foto: © de Amadeu Baptista

domingo, 20 de novembro de 2011

Nína Bjork Árnadóttir, 5 poemas



A LORCA

Desapareceram os nossos cavalos
silenciosamente no bosque.

Ponho a minha mão sobre o teu coração.
Foi aqui?

Dás-me a tua mão
conduzes-me à luz
e ofereces-me a navalha
enquanto os nossos cavalos desaparecem
silenciosamente no bosque.

Cravo a navalha no coração
distanciamo-nos silenciosamente.

Sorridentes descemos o declive
mutuamente saboreando as nossas palavras.

                                  
( de Undarlegt er ad spryrja mennina, 1968)




INTERESSANTE É PERGUNTAR AOS OUTROS

Interessante é perguntar aos outros
pelos demais.
Interessante é perguntar pela paz
e o amor.
Interessante é sentir o teu alento
meu filho
sentir-te beber dos meus seios
das flores dos meus seios.

Pergunta-o aos outros.

                                  
( de Undarlegt er ad spyrja mennina, 1968)





CANÇÃO

Não te posso esquecer
durante a noite não durmo
Às vezes as tuas palavras eram como lâminas
outras vezes como sinos
deitámos fogo a uma montanha
que logo nos recordou para sempre
Cantou a urze
cantaram todas as plantas
o nosso amor

e não pude esquecer-te
não posso dormir à noite.

                                  
( de Bornin í gardinum, 1971)





NOITE DE JUNHO

( canção para flauta )

Cantaram pássaros
em nossos olhos
os nossos dedos
voaram
de sonho
em sonho

os meus lábios
no teu ombro
a brisa
intimamente alegre

os teus lábios e a tua língua
flores voadoras
eu fui o seu prado
essa noite

fui água, montanha, barro
e sobretudo
arroio imensamente alegre
que corria
entre as tuas pernas
e te arrastava
para o abismo

ali onde brilhava
como cristal
a tua semente.

Tão ardentes eram os nossos corações
tão ardentes
pulsavam
juntos.

Tão ardentes eram
os nossos corações
tão ardentes
que o gelo não poderá
jamais
endurece-los.

E desde então sempre
cantamos cada um
no sangue
do outro
cantamos sempre desde então
cada qual
no sangue
do outro.

                                  
( de Svartur hestur í myrkrinu, 1982)





CONVIDADOS

Anoitece no nosso pensamento
sossegaram as vozes das tarefas
oxalá a noite fosse tão comprida como o dia
e maior o descanso
porque andamos a transformar em convidados
um montão de guinchos e zumbidos.

Tenho sonhos terríveis, irmão,
sonhos terríveis,
sonho
que somos a engrenagem de uma máquina uivante
e não conseguimos fazer ver
que somos eu, e tu, irmão,
e não a roda numa máquina uivante.

                                  
( de Hvíti trúdurinn, 1988)


Versão minha; © de Amadeu Baptista


Nína Bjork Árnadóttir. Poeta, dramaturga e romancista islandesa. Nasceu a 7 de Junho de 1941. Formou-se na Escola de Actores de Reykjavik e na Universidade de Copenhaga. Faleceu a 16 de Abril de 2000.

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Vida adulta / 32

DOIS MIL E SEIS

Quando escrevemos poesia escrevemos o idioma
das crianças que não falam, o idioma
que as crianças que ainda não aprenderam a falar
trocam entre si, no silêncio intransmissível
do melhor da infância. Quando escrevemos poesia escrevemos
algo mais profundo que a emoção ou a memória,
porque da ausência de emoção e de memória
há-de sempre tratar a poesia, por mais novelos
de emoções e de memórias que se descubram
na linguagem atroz, na linguagem
sempre insuficiente. A minha arte poética,
aquela onde empreendo uma efémera tentativa
para renascer pelo conhecimento, não pode ser
senão essa fragilidade perante o que é real mas não tem nome, o que é real
mas só a uma música desconhecida corresponde
na impaciência de estar e não saber falar. Por isso,
o meu nome é esta cintilação obscura onde uma criança se oculta,
esta paisagem de instantes onde persigo a luz.


( in Açougue, Corunha, Espiral Maior, 2009)
 
 

Foto: © de Amadeu Baptista

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Joaquim Cardoso Dias


Joaquim Cardoso Dias, poeta convidado



Notícia para uma carta de José Agostinho Baptista

3.
Estou a pensar nos amigos que amei e
lembrei-me que a poesia não é feita de
palavras, mas
da cólera de não sermos deuses. Por isso,
falo do perigo de escrever
para encontrar o segredo dessas palavras.
E escrever é sempre aquele desejo demasiado
inocente. Às vezes,
fazia-me falta o mar
e a sabedoria das lâmpadas que despem
as cidades
e que enlouquecem esta profecia. Mas eu
digo
escrevo
oiço
com a certeza de que o amor absoluto é
ao mesmo tempo necessário
e impossível. Como a amizade.
Sei-o há muito tempo.
Lembro-me do milagre de curar uma mentira
com este mar por detrás dos vidros da janela
ao longe
descendo
na inquietação dos dias
neste exacto momento,
como um filme,
o barulho do mar é uma noite infindável
erguida do sono e cega pela escuridão.
Hoje a chuva é um segredo que o meu corpo
guarda para o meu corpo
depois
do lume dos pássaros e dos gritos desiguais
das crianças no pátio da escola.
Hoje ainda nada sei da trovoada ou dos anjos
caídos
devagar
e eu não tenho culpa. Eu
poderia até construir uma casa
numa árvore grande e depois ficar no céu
a pensar para ter coragem de dizer tudo isto
assim
à flor da boca entre a Rua dos Caminhos de Ferro
e o Arco das Portas do Mar
à mesa de café em Santa Apolónia entre tantas partidas
e chegadas e sentir o olhar a cada instante
como um girassol na inclinação dos mastros,
um perfil doce e triste em mármore branco
movendo-se com a velocidade de uma doença fixa,
torturado em ouro com mãos que matam
a minha alma nómada.



Primeira Parte

Nesta página recomeço a partir de muito pouco.
Pergunto-me
como foi possível um livro
sonhar numa gaveta desarrumada,
no interior dos dias
sem ninguém,
como se simples fosse o modo de
ir para longe,
o silvo dos comboios,
a música do mar,
o rasto dos aviões à volta de
uma ilha
e as mãos tristes
completamente sós.
Pergunto-me para que serve a infância
e os hábitos que nos aproximam uns dos outros,
esses significados sem defesa possível
a trair a vida
toda,
os degraus da frente da casa como uma
palavra justa
demasiado perto
de tantos nomes imóveis
(a inocência
ou este perigo)
e olhando nos olhos uns dos outros,
quase
com as mãos nos bolsos,
podemos viver
com água nos pulmões,
e dizer que à força da respiração
escrever
é como viajar à boleia,
procurar este trabalho onde
fulguram os pêlos da nossa masculina morte
e continuarmos outra vez
inertes a um vício sincero
de esconder o peso da boca
em redor da cabeça
ao fundo da rua que
mediu o mundo,
que é todo assim
por baixo do fogo,
no fundo do mar
e dos números nos cascos dos navios,
e das paredes do quarto
à deriva.






Registo horizontal

Querido amigo,
A distância dos braços é também
uma asa mordida sobre a pele
na primeira casa em que nascemos.
Eu escrevo livros para pulsar
no mundo,
para a felicidade de todos ser mais diferente
e nunca mais acontecer.
Ontem reconheci o mar rente à janela
e as cidades envolvidas pelo nevoeiro,
a alma que a luz em luminosa sombra
rouba sinais e desejos.
Por mim,
nunca saberei dessa palavra

que ergue o nome
do que não vem mais.
E a minha casa,
digo-te agora,
a minha casa é onde tu
estás. Além-mar.
Não esqueças.
Adeus.
Abraço-te muito.




                Joaquim Cardoso Dias nasceu num mês de Junho em Castelo Branco e vive em Lisboa. É licenciado em Sociologia e não entende para que serve ser licenciado neste país e num tempo assim. Publicou livros de poemas e muitos poemas em antologias, revistas e jornais (em Portugal e no estrangeiro). Gosta de fotografia e já expôs fotografia e publicou fotografias em tantos "lugares" que nem se lembra bem de todos.



Fotos (que ilustram os poemas): © de Amadeu Baptista; Poemas: © de Joaquim Cardoso Dias

domingo, 13 de novembro de 2011

Vida adulta / 31

DOIS MIL E CINCO

Os sortilégios florescem neste caminho
e tenho o sonho de sempre. Alguma vez
daremos as mãos e o círculo em vez de se fechar
há-de abrir-se ao misterioso encanto. Eu estou
com os homens, bem para lá do triunfo desse poder
sem nome, essa facção dos que temem
porque não é bastante o amor. Confio, numa palavra.
E sei quanto vale o fascínio de um cântico,
quanto vale esse inesperado sentimento
de entregar o sonho contra o ódio secular.
Dou um passo, e outro, e outro ainda.
E a voz do vento é audível para além do silêncio,
este mar de gente onde a ânsia aguarda
que a justiça chegue e possa festejar
a amplitude do sangue que há em cada homem.
Eu sei que nos encontramos para não nos perdermos.
Do início de tudo alastra para sempre
um enigma maior que a raça de que somos, um instantâneo
de luz onde um ponto de harmonia
amplia a dimensão do sofrimento
para que haja um sentido universal
que obstine o sonho e proclame a vida.
Apontam-nos a carabina e disparam sobre nós.
Mas há um rastro na frágil transparência
das nossas mãos erguidas sobre a terra,
um golpe subtil que o coração entende
quando as lágrimas fecundam o chão onde fundamos
o sangue de que a terra há-de crescer.
Os sortilégios florescem neste caminho
e tenho o sonho de sempre.
Só o amor transfigurará o mundo.
( in Açougue, Corunha, Espiral Maior, 2009)








Foto: © de Amadeu Baptista



J.S. Bach, Air


terça-feira, 8 de novembro de 2011

Vida adulta / 30

DOIS MIL E QUATRO

Ainda bem que sou um homem do norte.

Ainda bem que tenho um horror suculento
a parasitas pardos e viúvas negras.

Ainda bem que resisto como um pré-esforçado
e registo em cadernos as incandescências do mar.

Ainda bem que evoluo na travessia das nuvens,
e acredito
e aceito, ainda.

Ainda bem que num momento particular
estou em presença de um torso
e um cavalo a arder,
em sinal de vida, sobre o campo visual.

Ainda bem que não mastigo bem,
não digiro bem,
não dirijo bem,
e choro, como uma criança.

Ainda bem que as formas circuncêntricas
se explanam como processos escultóricos
e a manhã deste outono anunciado
é primaveril.

Ainda bem que nas paisagens reais
não há seres indefesos
  não há seres indefensáveis
nesta rede de hipóteses cruéis e sanguinárias.

Ainda bem que a irregularidade é a única lei
dos fora-da-lei
e no outro lado da duna,
no outro lado da rua,
há uma curva,
depois um bosque,
depois uma depressão no terreno
que denominamos com contracções musculares,
sobreposições de imagens,
Deus, na aula de trabalho manuais.

Ainda bem que, após a fuga,
há uma casa na árvore para retemperar as forças.

Ainda bem que sou um homem de sorte.


( in Açougue, Corunha, Espiral Maior, 2009)


Foto: © de Amadeu Baptista

sábado, 5 de novembro de 2011

Vida adulta / 29

DOIS MIL E TRÊS

Aos cinquenta anos há já poucas decisões
para tomar.

Os filhos estão criados,
há muito que deixaram de tocar a relha
do arado
e de olhar as árvores
como poderosos
instrumentos da imperceptibilidade.

Sem alegria,
ouvimo-los sussurrar,
quase em segredo,

«agora não se agaste,
de há uns tempos a esta parte pertencemos
a um reino
de números primos
e não queremos voltar ao canavial».

Aos cinquenta anos,
nem já um cão queremos ter,
vamos de café em café a pôr questões inúteis,
a perguntar
se o desejo que temos pela mulher que passa
é realmente genuíno,
ou só a desejamos
pelas meias violeta que lhe iluminam
a perna,
fazendo entretecer a agitação do corpo
com uma certa graciosidade incontornável.

Aos cinquenta anos,
apenas indagamos as horas a que é o jogo,
sem qualquer intenção de o irmos ver
ou anotar na agenda
a hora pré-determinada
da consulta
em que a exclusão nos vai visitar,
aqui,
ali,
no centro médico,
ou na capela mortuária
onde dizemos um derradeiro adeus
ao mais pontual amigo.

Aos cinquenta anos,
constatamos que o radiador perde água,
que a lâmpada fundida está coberta
por uma fina película de poeira
que nunca víramos antes,
a mesma poeira que suja a nossa pele,
a nossa excessiva presença pela casa.

Aos cinquenta anos
a cabeça vai-nos caindo sobre o peito
e sufocamos com sono
e os joelhos dobram-se sobre nós,
no exacto momento em que recitamos a oração da infância,
com medo do escuro,
o mesmo medo do escuro
de quando éramos meninos
e o vigor dos nossos tornozelos suportava
a correria no vento,
entre os fetos.

Aos cinquenta anos
perdemos mais um dente,
espiamos a cabeleira ainda farta,
percebendo que não nos irá faltar cabelo
até ao fim,
se, eventualmente,
a radioterapia se desviar de nós
e o arsenal químico do costume
se não interpuser entre a nossa ténue esperança.

Aos cinquenta anos
ainda projectamos ir pela pedreira
à procura de mica e feldspato,
ainda interpelamos a morte
com as mãos vivas, ensombrecendo
o chão à nossa frente,
limpo,
sinuosamente limpo à nossa frente,
atirando uma pedra para o lago
na tentativa vã de descobrirmos
o que são esses círculos circuncêntricos
que, com mansa bonança, avançam
para a margem.

Aos cinquenta anos,
dizemos, entre-dentes,
“calma, não é, ainda, o fim do mundo”,
enquanto perscrutamos o sulco
que a retroescavadora abriu
no campo largo.


( in Açougue, Corunha, Espiral Maior, 2009)


Foto: © de Amadeu Baptista